Frederick Douglass e o identitarismo negro

January 18, 2022

Racismo

De um lado, Frederick Douglass: quem é?

Frederick Douglass (1818-1895), tendo nascido escravo e, após fuga, tendo se tornado um dos maiores abolicionistas do século XIX, é um dos principais ícones históricos da luta por liberdade, seja em seu tempo, seja como referência para as lutas posteriores por liberdade. Sua história se encontra em suas 3 auto biografias, nas centenas de textos que escreveu, e nas centenas de discursos que proferiu. Para resumir e passar por fim ao tema deste texto, o conflito entre o pensamento deste gigante abolicionista e o dos identitários negros, seguem alguns dos principais fatos da vida de Douglass:

– nasceu escravo por volta de 1818, filho de uma escrava, Harriet Bailey, e ao que tudo indica, de seu então dono, Aaron Anthony (1767-1826);

– recebeu suas primeiras lições de abecedário da Sra. Sophia Auld (1797-1880), esposa de outro de seus donos, Sr. Hugh Auld (1799-1861). Estas lições foram interrompidas devido às leis de proibição de alfabetização de escravos. Tendo percebido justamente nessa proibição a importância de ele, como escravo, aprender a ler, Douglass não se deu por vencido, e passou a receber aulas escondido de garotos brancos em troca de comida, e aprendeu a ler praticamente sozinho;

– ainda enquanto escravo, ensinou outros negros escravizados a ler;

– após tentativas fracassadas de fuga, é posto sob as rédeas do Sr. Covey, um famoso feitor e “domador de escravos”, contra o qual travou uma luta física, para evitar de ser açoitado, e lutou até que o Sr. Covey pedisse para parar. Desde então, o Sr. Covey nunca mais tentou castigar Douglass fisicamente, com medo de apanhar novamente;

– o episódio de luta e vitória física contra o Sr. Covey o deixou ainda mais decidido a fugir, mesmo após as tentativas fracassadas ao longo da sua adolescência. Finalmente, aos 20 anos, Douglass obteve sucesso, com ajuda de documentos falsos da Marinha Americana conseguidos por Anna Murray Douglass (1813-1882), negra livre com quem se casará logo em seguida;

– já em liberdade, vive com Anna uma vida de trabalho árduo porém livre e feliz, através do qual conseguem obter uma vida confortável;

– Passa a frequentar e participar ativamente de reuniões e atividades abolicionistas.

Nascer escravo, aprender a ler escondido, ensinar outros escravos a ler, descer a porrada em um feitor deixando-o com medo de apanhar de novo, fugir, se casar, se tornar um trabalhador livre, obter uma vida confortável, e se dedicar a abolição da escravidão. Tudo isso até a idade de em torno de 20 anos. Alguém acha pouco? Levando-se em conta o que ainda virá, realmente ainda é pouco, é apenas o começo.

Enquanto escravo, Douglass teve que lutar, fisicamente inclusive, para se impor como ser humano, para não permitir que lhe tratassem como animal. Já em liberdade, a luta de Douglass para se impor não acabou. Apesar da maior das boas vontades dos abolicionistas brancos, estes ainda estavam imersos em pensamentos racistas. Para eles, cabia a eles, os sábios e civilizados e bem intencionados abolicionistas brancos, falar pelos ingênuos e desregrados e ignorantes negros. Com toda sua gratidão para com estes abolicionistas brancos, Douglass sabia que este pensamento era apenas mais uma forma de inferiorizar os negros, e novamente se impõe pela força, desta vez pela força de seu intelecto, de sua cultura geral invejável até para os dias de hoje (Douglass tinha profundo domínio dos Pais Fundadores a Bíblia, de Shakespeare a Victor Hugo, entre outros), de sua escrita, retórica e oratória (até hoje estudadas em algumas das principais universidades dos Estados Unidos, e por consequência, do mundo), enfim, pela força de sua intensa, combativa e sofisticada militância pública. Assim, Douglass logo se destaca como liderança na causa abolicionista. Um resumo de sua trajetória daí em diante se encontra a seguir:

– como jornalista e palestrante, se torna rapidamente um dos principais escritores e oradores da causa abolicionista;

– para calar os que se negavam a acreditar que a escravidão era assim tão cruel, e que um negro ex escravo poderia ser o dono de um estilo tão potente e sofisticado de escrita e de discurso, em 1845 Douglass publica sua primeira autobiografia, Narrativa da Vida de Frederick Douglass, citando nomes e lugares que confirmavam sua história. A obra se torna rapidamente um best seller nos Estados Unidos e na Europa;

– para evitar ser recapturado pelo seu antigo dono logo após o sucesso de sua Narrativa, Douglass refugia-se na Inglaterra, onde se mantém firme em atividades abolicionistas;

– rapidamente se torna celebridade na Inglaterra, dividindo palco com grandes nomes ingleses da luta abolicionista, da luta por livre comércio e da luta por temperança;

– entra em contato com a situação de humilhação e miséria dos irlandeses católicos sob domínio inglês, e sai em defesa deles. Douglass afirma assim que a sua causa não era para com os negros apenas, mas para com a humanidade;

– tem sua alforria comprada por amigas da causa abolicionista e pouco depois retorna aos Estados Unidos como um homem completamente livre;

– publica uma carta aberta ao seu antigo dono Thomas Auld (1794-1894), irmão do Hugh Auld que o proibiu de se alfabetizar. Com esta carta aberta, Douglass protagonizando um dos momentos mais marcantes da história do abolicionismo;

– por divergências com os demais abolicionistas (entre outros motivos por não ser um negro submisso), funda seu próprio jornal, The North Star;

– participa da Convenção de Seneca Falls, de 1848, evento fundador do movimento feminista americano, liderado por uma amiga de longa data da causa abolicionista, Elizabeth Cady Stanton (1815-1902), e com presença de algumas poucas dezenas de mulheres e alguns homens. Além de ser um dos poucos homens, Douglass foi a única pessoa negra no evento. Daí até o fim da vida, Douglass será um dos mais destacados militantes pelos direitos das mulheres. Douglass reafirma assim que sua causa não era para com os negros apenas, mas para com a humanidade;

– publica The Heroic Slave em 1852, a primeira obra de ficção publicada por um autor negro nos Estados Unidos, na qual Douglass narra a trajetoria heróica do escravo Madison Washington, inspirado no caso real de 1841, em que um escravo de mesmo nome tomou um navio negreiro e o levou a Nassau, nas Bahamas, terras então pertencentes ao Império Britânico, que na época já havia abolido a escravidão. O herói da obra está disposto a literalmente matar ou morrer pela liberdade, sua e a de outros escravos. Esta obra teve bastante impacto na época, e marcou uma escalada de agressividade na militância de Douglass.

– comemora o início da Guerra Civil Americana (1861-1865) como o meio pelo qual se poderá matar escravistas de forma franca e libertar escravos;

– participa diretamente da idealização, criação e recrutamento do 54º Regimento de Voluntários da Infantaria de Massachusetts, o primeiro regimento do exército americano formado por negros, e luta por igual tratamento para os soldados negros em relação aos soldados brancos;

– firma-se como conselheiro pessoal de Abraham Lincoln (1809-1865), convencendo-o enfim da urgente necessidade de abolição da escravidão dos negros para que assim a União vencesse a Confederação;

– logo após o fim da guerra, com a vitória da União e a conquista da abolição da escravidão, passa a lutar pela imediata e integral igualdade de direitos para os negros recém libertos: direito a propriedade privada, a livre iniciativa, a educação civil e profissional, a posse e porte de armas, a liberdade de expressão, a participação política ativa como eleitores e candidatos, a presença em tribunais como testemunhas e juris, etc.;

– ainda logo após o fim da guerra, faz uma ácida crÍtica às tendências de caridade para com os negros recém libertos, exigindo pleno respeito às suas capacidades. Douglass queria que os negros fossem vistos e se vissem como seres humanos plenamente capazes de se sustentarem por si próprios, sem serem, enquanto raça, um peso a ser sustentado pelas outras. A preocupação de Douglass quanto a isso vinha de que a ideia de que os negros não conseguiriam se sustentar por si próprios sem a caridade dos brancos foi um dos principais argumentos escravistas por décadas;

– no fim da década de 1860, rompe com suas amigas feministas (mas não com a luta feminista em si) por acreditar que os homens negros deveriam receber direito ao voto antes das mulheres (brancas, no caso). Mas este rompimento não é perpétuo, como se verá mais adiante;

– ainda no fim da década de 1860, sai em defesa da garantia de plena igualdade de direitos para os imigrantes chineses que estavam chegando em massa aos Estados Unidos na época, o que foi visto como inconveniente por vários negros inclusive, que temiam perder empregos para os imigrantes chineses. A raiz dos argumentos de Douglass, no entanto, ia além daquele caso específico, sendo mais ampla e profunda, em favor de livre imigração, de igualdade de todos perante a lei, independente da origem e/ou raça/etnia, de pluralismo religioso, e de livre comércio internacional. Tal como no caso de sua defesa dos irlandeses e das mulheres, Douglass reafirma novamente que sua causa não era para com os negros apenas, mas para com a humanidade;

– ao fim da década de 1870, é nomeado pelo então presidente Rutherford Hayes (1822-1893), delegado federal do distrito de Columbia, e em função deste cargo, passou a morar em Cedar Hill, no subúrbio de Anacostia. Foi o primeiro delegado federal negro da história dos Estados Unidos. Devido a essa nova moradia, ele passou a ser chamado de “Sábio de Anacostia”;

– no início da década de 1880, reage vigorosamente contra a declaração de inconstitucionalidade da Lei dos Direitos Civis de 1875, declaração a qual abriu caminho para as leis Jim Crown de segregação racial. Para Douglass (e qualquer um com bom senso), permitir discriminações públicas e privadas por motivos de raça era parte do velho espírito escravista. Apesar de não ter vivido para vencer esta batalha, a sua luta pela plena garantia dos direitos civis no fim do século XIX foi precursora direta do movimento pelos direitos civis que culminará na década de 1960 com Luther King (1929-1968);

– reconciliado com suas amigas feministas, em 1888 discursa no evento de fundação do Conselho Internacional de Mulheres, ocorrido também sob a liderança de Stanton, quarenta anos depois da Convenção de Seneca Falls. Foi o primeiro evento feminista de cunho internacional, que fundou a primeira organização feminista de cunho internacional, a qual existe até hoje aliás. Em seu discurso, Douglass argumenta pela validade de princípios individualistas para as mulheres tal qual para homens, o que o aproxima do feminismo liberal do século XIX, e do feminismo libertário de atualmente;

– como membro do Partido Republicano, é em 1888 o primeiro negro a ter o nome indicado e a  receber um voto para formação de chapa para candidatura à presidência por um grande partido. Douglass sempre foi um republicano convicto desde o nascimento do partido em meados da década de 1850, pois via no Partido Republicano a essência de um partido de reformas radicais e progresso. No entanto, ao fim da vida Douglass demonstrou bastante decepção com os rumos que Partido Republicano vinha tomando, com a perda desta essência em troca de crescimento eleitoral no Sul racista. Ainda assim, Douglass até o fim da vida afirmou de forma assertiva que o Partido Republicano ainda era muito melhor que o Partido Democrata, fundado no fim da década de 1820 pelo escravista, genocida de indígenas, xenófobo e populista Andrew Jackson (1767-1845), com o intuito de representar as maiorias formadas pelas pessoas comuns, mesmo quando elas fossem escravistas, racistas e xenófobas. No fim das contas, Douglass se tornou um triste visionário diante das raízes da decadência do Partido Republicano, a qual chegou ao ápice no recente governo de Donald Trump (1846-), o último presidente republicano dos EUA até aqui, que liderou uma guinada populista da direita mundial, fazendo questão de demonstrar abertamente que o fazia enquanto um admirador e seguidor das ideias do democrata Andrew Jackson.

– ao fim da década de 1880, é nomeado pelo então presidente Benjamin Harrison (1833-1901) como embaixador do Haiti, sendo o primeiro negro a ser nomeado embaixador da história dos Estados Unidos.

– apesar de ter morrido em 1895, o século XIX fechou tendo Douglass como o americano mais fotografado. Para Douglass, os progressos técnicos e científicos do qual a fotografia era fruto, junto a um ambiente economicamente liberal no qual poderiam se tornar acessíveis e lucrativos, poderiam e deveriam ser meios usados em conjunto em favor do progresso social. O que Douglass queria, através das suas fotografias, nas quais faz questão de sempre manter uma postura elegante e imponente, era melhorar a representação pública dos negros, melhorar a forma como negros eram vistos e como se viam. Assim, Douglass é um precursor do atual argumento de que representatividade importa.

É, sem sombras de dúvida, uma grandiosa e invejável trajetória, uma biografia que coloca Douglass no panteão dos grandes da história, uma história que deve ter rendido a Douglass, no fim da vida, um incontestável reconhecimento como ícone, em especial entre os negros, certo? Infelizmente, não foi bem assim…

 

Vida pessoal, repúdio público.

Em 1884, dois anos após a morte de sua primeira esposa, Douglass casou-se novamente, dessa vez com Helen Pittis (1838-1903), uma famosa ativista abolicionista e feminista, e branca. A decisão de se casarem, mesmo tendo diferentes cores de pele foi, para a época, um ultraje. Esta decisão foi vista com revolta tanto por brancos, que acusavam Pitts de um ato sujo, quanto por negros, que acusavam Douglass de trair sua raça, sem falar que desafiou abertamente as leis anti miscigenação vigentes.

Para se ter uma ideia do (com perdão do anacronismo no uso de um termo contemporâneo para descrever uma situação do século XIX) “cancelamento” que Douglass e Pitts sofreram, Pitts foi rejeitada pelos próprios pais, ao passo que Douglass foi rejeitado pelos próprios filhos. O impacto social e público da decisão (no fim das contas pessoal e privada) de Douglass foi tal a ponto de um T. Thomas Fortune (1856-1928), um amigo pessoal de Douglass, um dos mais influentes jornalistas negros e um dos mais importantes militantes pelos direitos dos negros no entre séculos, ter se pronunciado da seguinte forma:

“as mulheres negras consideraram [o casamento de Douglass] um desprezo, senão um insulto, à sua raça e beleza”

e ter sustentado o seguinte argumento:

“grandes homens de cor, como grandes homens brancos, devem alguma deferência aos preconceitos do povo que representam”.

Esta áspera crítica ainda foi suave diante de outras bem mais pesadas, como a publicada no jornal Weekly News, dirigido por negros e com sede em Pittsburgh, na qual se lia:

“Fred Douglass se casou com uma ruiva branca. Adeus sangue negro naquela família. Não temos mais uso para ele. Sua foto está pendurada em nossa sala, vamos pendurá-la nos estábulos.”

Em resposta a tudo isto, Douglass também se mostra bastante áspero, seja no  polêmico texto em O Futuro da Raça Negra, no qual afirma que

“A oposição à amalgamação, de que ouvimos tanto por parte das pessoas negras é, na maior parte, mera afetação”

seja em sua terceira autobiografia, na qual relembra que

“Nenhum homem, talvez, tivesse ofendido mais o preconceito popular do que eu havia feito ultimamente. Eu me casei com uma esposa. As pessoas que tinham permanecido em silêncio sobre as relações ilegais dos senhores de escravos brancos com suas escravas negras me condenavam em voz alta por casar com uma esposa alguns tons mais clara do que eu. Eles não fariam objeção se eu me casasse com uma pessoa mais escura do que eu, mas casar com alguém muito mais claro e com a pele do meu pai ao invés da de minha mãe era, no olhar popular, uma ofensa chocante, e uma pela qual eu deveria ser condenado ao ostracismo por brancos e negros”

Já em uma carta a sua amiga Amy Post (1802-1889), outra gigante do movimento abolicionista e feminista do século XIX, Douglass se mostra até mesmo desdenhoso daqueles que queriam cuidar da vida dele:

“Tenho muito pouca simpatia pela curiosidade do mundo sobre minhas relações domésticas. Que negócio tem o mundo com a cor da minha esposa? Quer saber quantos anos ela tem? Se seus pais e amigos gostaram de seu casamento? Como eu a cortejei? Se foi com amor ou com dinheiro? Se estamos felizes ou infelizes agora que estamos casados ​​há sete meses? Você riria ao ver as cartas que recebi e o jornal falando sobre esses assuntos. Não faço muito para satisfazer o público sobre esses pontos, mas há um em que desejo que você, como uma velha e querida amiga, esteja totalmente satisfeita: que Helen e eu estamos fazendo a vida correr muito feliz e que nenhum de nós se arrependeu de nosso casamento”.

Trazendo para um claro pt-br atual (novamente com perdão do anacronismo), Douglass foi “cancelado” pela chamada “palmitagem”, que é quando pessoas negras se relacionam com pessoas brancas. Não é de se surpreender, no entanto, que ele não tenha se importado muito. Para alguém que foi peça chave na abolição da escravidão de milhares de negros e negras, o repúdio de vários destes por uma escolha no fim das contas de sua vida pessoal, realmente não seria algo com o que se abalaria.

 

Do outro lado, identitários negros: quem são?

De acordo com o dicionário Oxford, pode-se chamar de identitário o que ou quem “apoia ou advoga em favor de interesses políticos de uma particular raça, etnia ou grupo nacional, tipicamente composto por europeus ou pessoas brancas”. Historicamente falando, termo e conceito se desenvolveram de forma mais clara e explícita na segunda metade do século XX, no contexto de uma extrema direita branca na Europa e posteriormente nos Estados Unidos, Canadá e Oceania, que buscava se reerguer das cinzas após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Na verdade, falar em identitários e identitarismo na Europa atualmente é falar em movimentos nacionalistas brancos que vem ganhando força em países como França, Áustria, Alemanha, Reino Unido, etc, e que vem na verdade ultrapassando as barreiras da Europa e ganhando força nos Estados Unidos, no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, países com uma grande população branca euro descendente. Estes movimentos vem ganhando notoriedade nos últimos anos devido às suas pautas anti imigrantes de origem africana e do Oriente Médio, e de origem latina no caso dos Estados Unidos,  anti miscigenação com não-brancos, e de afirmação orgulhosa da ascendência branca europeia, e são profundamente influenciados pelas ideias racistas e xenófobas de pensadores franceses de extrema direita, como Dominique Venner (1935-2013) e Alain de Benoist (1943-), dois dos grandes nomes do etno-nacionalismo europeu desde o pós guerra até os dias de hoje, Guillaume Faye (1946-2019) um dos principais intelectuais antissemitas e anti muçulmanos da Europa nas últimas décadas, e Jean Renaud Camus (1946-), cujas denúncias de um suposto genocídio branco foram influência direta para ataques terroristas como o do tiroteio na mesquita Al Noor na Nova Zelândia, levado a cabo pelo terrorista branco Breton Tarrant, e o do tiroteio em El Paso nos Estados Unidos, contra a população latina local, levado a cabo pelo terrorista branco Patrick Crusius, ambos os ataques de 2019. A expressão “terrorista branco” não foi colocada aqui à toa. Para ambos os terroristas citados, que fizeram questão de se expor e expor suas ideias e até onde estavam dispostos a levá-las a cabo, o que eles fizeram foi em defesa da suposta identidade branca que os uniria aos europeus brancos em geral e seus descendentes ao redor do mundo.

E apesar de seu desenvolvimento mais explícito estar originalmente ligados à Europa branca no pós Segunda Guerra, ideias e posturas identitárias já podiam ser encontradas no século XIX nos Estados Unidos, como entre confederados que fundaram a famigerada Ku Klux Klan após a derrota na Guerra Civil Americana (1861-1865), em defesa, armada inclusive, da identidade branca protestante do Sul dos Estados Unidos.

Então, diante disso tudo, o que negros poderiam ter a ver com o pensamento identitário, além de serem alvos de discriminações?

Entre os negros que se oporam de forma pública e veemente ao casamento interracial de Douglass, já se podia encontrar as sementes do que se poderia chamar de identitarismo negro, apesar de então ainda estar num nível de mero preconceito e mal estar público. Obviamente, não há equiparação alguma aqui. Uma KKK, por exemplo, é um grupo terrorista, os negros que repudiaram publicamente o casamento interracial de Douglass, não. A questão é que a ênfase na própria identidade racial negra foi um elemento forte na crítica feita ao casamento interracial de Douglass.

Mas indo além do nível de mero preconceito e mal estar público, as raízes intelectuais mais complexas e sofisticadas do que se poderia chamar de sistematização do pensamento identitário negro podem ser encontradas em autores negros de grande peso como, por exemplo, W.E.B Du Bois (1868-1963), um dos principais líderes afro-americanos do fim do século XIX e de boa parte do século XX, e que em vários aspectos foi um defensor e herdeiro do legado militante de Douglass, em especial de sua defesa da auto-afirmação individual por um lado, e do empoderamento social, político e econômico por outro lado. Mas Du Bois ia na contramão do pensamento de Douglass quando o assunto era miscigenação e identidade racial. Como já se viu acima, Douglass não tinha absolutamente nenhum problema com a miscigenação, e era bastante crítico dos negros que tinham problemas com ela, tão pouco se importava com identidade racial, o que lhe importava era a humanidade. Já Du Bois, em textos como o clássico The Conservation of Races de 1897, apresenta uma posição oposta, uma posição racialmente conservadora e romântica em relação a devoção pelos laços sanguíneos e raciais como a base para a grandeza dos laços culturais, indo desde elogiar a preservação da identidade, primeiramente sanguínea e racial, e em seguida cultural, dos povos teutões (a grosso modo, alemães), e chegando a sugerir que os negros fizessem o mesmo para se tornarem grandes, mas como um povo, e não como indivíduos:

“Embora as diferenças raciais tenham seguido linhas raciais principalmente físicas, nenhuma mera distinção física realmente definiria ou explicaria as diferenças mais profundas – a coesão e continuidade desses grupos. As diferenças mais profundas são espirituais, psíquicas, diferenças sem dúvida baseadas no físico, mas que o transcendem infinitamente. As forças que unem as nações teutônicas são, então, primeiro, sua identidade racial e sangue comum; em segundo lugar, e mais importante, uma história comum, leis e religião comuns, hábitos de pensamento semelhantes e uma luta consciente em conjunto por certos ideais de vida.”

Coloque esta linha geral de pensamento na boca de um alemão na primeira metade do século XX e se terá um nazista. Não é a toa que Du Bois, durante os primeiros anos da Alemanha Nazista, chegou a elogiar a sua grandeza. É preciso antes de tudo contextualizar aqui, e lembrar que na época pouco se sabia da verdadeira e profunda natureza do nazismo. E obviamente Du Bois não foi além do que isso em relação a Alemanha Nazista, e obviamente retrocedeu radicalmente ao ver o que realmente era o nazismo, tendo sido um dos mais ferozes denunciadores do antissemitismo nazista. Mas o ponto aqui é que narrativas que exaltavam conquistas, não individuais, mas coletivas, em termos de raça e nacionalidade, eram bastante atraentes para intelectuais de todas as cores e tons de pele. Essa atração é o que Du Bois demonstra em outras passagens de seu texto:

“Manifestamente, algumas das grandes raças de hoje – particularmente a raça negra – ainda não deram à civilização a mensagem espiritual completa que são capazes de transmitir. Não direi que a raça negra ainda não deu nenhuma mensagem ao mundo, pois ainda é uma questão debatida entre os cientistas até que ponto a civilização egípcia era negra em sua origem; se não era totalmente negra, certamente era muito próxima. Seja como for, no entanto, permanece o fato de que a mensagem negra completa de toda a raça negra ainda não foi dada ao mundo; que as mensagens e o ideal da raça amarela não foram completados, e que a luta dos poderosos eslavos apenas começou. A questão é, então: Como essa mensagem será entregue; como esses vários ideais devem ser realizados? A resposta é simples: pelo desenvolvimento desses grupos raciais, não como indivíduos, mas como raças. Para o desenvolvimento do gênio japonês, da literatura e da arte japonesas, do espírito japonês, somente os japoneses, unidos e vinculados, japoneses inspirados por um vasto ideal, podem realizar em sua plenitude a mensagem maravilhosa que o Japão tem para as nações da Terra. Para o desenvolvimento do gênio negro, da literatura e arte negras, do espírito negro, apenas os negros, unidos e vinculados, negros inspirados por um vasto ideal, podem realizar em sua plenitude aquela grande mensagem que temos para a humanidade. Não podemos reverter a história; estamos sujeitos às mesmas leis naturais que outras raças, e se o negro for um dia um fator na história do mundo – se entre as bandeiras coloridas que enfeitam as amplas muralhas das civilizações for pendurado uma bandeira negra intransigente, então deve ser colocada lá por mãos negras, moldada por cabeças negras e santificada pelo trabalho de 200 milhões de corações negros batendo em uma alegre canção de jubileu.

[…]

Pode-se, entretanto, objetar aqui que a situação de nossa raça na América torna essa atitude impossível; que nossa única esperança de salvação está em sermos capazes de perder nossa identidade racial na mistura de sangue da nação; e que qualquer outro curso apenas aumentaria o atrito das raças que chamamos de preconceito racial, contra os quais lutamos por tanto tempo e com tanto fervor.

Aqui, então, está o dilema, e é um dilema intrigante, eu admito. Nenhum negro que tenha pensado seriamente na situação de seu povo na América falhou, em algum momento da vida, em se encontrar nesta encruzilhada; em algum momento deixou de se perguntar: O que, afinal, sou eu? Sou americano ou negro? Posso ser os dois? Ou é meu dever deixar de ser negro o mais rápido possível e ser americano? Se eu me esforço como negro, não estou perpetuando a própria fenda que ameaça e separa a América negra e branca? Não é meu único objetivo prático possível a redução de tudo o que há de negro em mim ao americano? Meu sangue negro coloca sobre mim mais obrigação de afirmar minha nacionalidade do que o sangue alemão, irlandês ou italiano colocaria?

É esse autoquestionamento incessante e a hesitação que dele surge que está fazendo do período atual um tempo de vacilação e contradição para o negro americano; a ação racial combinada é sufocada, a responsabilidade racial é evitada, empreendimentos raciais definham, e o melhor sangue, o melhor talento, a melhor energia do povo negro não pode ser mobilizado para cumprir as ordens da raça. Eles recuam para dar lugar a cada patife e demagogo que optar por ocultar sua maldade egoísta sob o véu do orgulho racial.

[…]

Se considerarmos cuidadosamente o que o preconceito racial realmente é, descobriremos que, historicamente, nada mais é do que o atrito entre diferentes grupos de pessoas; é a diferença de objetivo, de sentimento, de ideais de duas raças diferentes; se, agora, essa diferença existe no tocante ao território, às leis, à língua ou mesmo à religião, é manifesto que essas pessoas não podem viver no mesmo território sem colisão fatal; mas se, por outro lado, houver acordo substancial em leis, idioma e religião; se houver um ajustamento satisfatório da vida econômica, então não há razão para que, no mesmo país e na mesma rua, dois ou três grandes ideais nacionais não possam prosperar e se desenvolver, para que homens de diferentes raças não possam lutar juntos por seus ideais raciais também, talvez até melhor, do que isoladamente. Aqui, parece-me, está a leitura do enigma que intriga tantos de nós. Somos americanos, não apenas por nascimento e por cidadania, mas por nossos ideais políticos, nossa língua, nossa religião. Além disso, nosso americanismo não vai. Nesse ponto, somos negros, membros de uma vasta raça histórica que desde o início da criação dormiu, mas meio desperta nas florestas escuras de sua pátria africana. Somos os primeiros frutos desta nova nação, o prenúncio daquele negro amanhã que ainda está destinado a suavizar a brancura do teutônico de hoje. Somos aquele povo cujo sutil senso musical deu à América sua única música americana, seus únicos contos de fadas americanos, seu único toque de pathos e humor em meio a sua plutocracia louca para obter dinheiro. Como tal, é nosso dever conservar nossas faculdades físicas, nossos dotes intelectuais, nossos ideais espirituais; como raça, devemos lutar pela organização racial, pela solidariedade racial, pela unidade racial para a realização daquela humanidade mais ampla que reconhece livremente as diferenças nos homens, mas reprova severamente a desigualdade em suas oportunidades de desenvolvimento.”

O resumo das ideias de Du Bois neste texto pode ser dado na seguinte proposta:

“Acreditamos ser dever dos americanos de ascendência negra, como um corpo, manter sua identidade racial até que esta missão [de grandeza racial] do povo negro seja cumprida, e o ideal de fraternidade humana tenha se tornado uma possibilidade prática”

Apesar do tom já claramente identitário do texto de Du Bois, foi apenas décadas depois que o identitarismo negro (e de outros grupos historicamente oprimidos)  tomou definitivamente a forma que conhecemos hoje. Em 1977, foi lançado o Manifesto do Coletivo Combahee River, um coletivo de mulheres negras lésbicas, que buscavam um norte de ação numa ênfase na luta organizada contra a tripla discriminação que sofriam, como mulheres, como negras e como lésbicas. Neste manifesto, há uma passagem emblemática que diz:

“Essa ênfase em nossa própria opressão está incorporada no conceito de política identitária. Ao invés de trabalharmos para acabar com a opressão de outras pessoas, acreditamos que a política mais profunda e potencialmente radical vem diretamente de nossa própria identidade. Esse é um conceito particularmente repugnante, perigoso, ameaçador e, portanto, revolucionário no caso das mulheres negras, porque é escancarado, ao olharmos para todos os movimentos políticos que nos precederam, que qualquer um é mais merecedor de liberação do que nós. Nós rejeitamos pedestais, reinados e caminhar dez passos atrás. Sermos reconhecidas como humanas, horizontalmente, é suficiente”.

Este trecho é muito interessante e representativo. O objetivo nele exposto é o reconhecimento da humanidade das mulheres negras através de, ao invés de trabalhar “para acabar com a opressão de outras pessoas”, trabalhar na luta contra as próprias opressões sofridas enquanto mulheres negras e lésbicas, já que “a política mais profunda e potencialmente radical vem diretamente de nossa própria identidade”. Esta foi a forma que proporam para combater desde o racismo que sofriam dos brancos em geral ao machismo que sofriam dos homens negros, e a homofobia que sofriam de brancos e negros por serem lésbicas. A intenção era serem elas próprias as que lutariam por si próprias enquanto mulheres negras lésbicas que eram, já que se não fossem elas que fizessem isso, outros não o fariam, como já não vinham fazendo na verdade.

A bem da verdade, primeiramente, é óbvio que a intenção geral desde do The Conservation of Races de Du Bois ao Manifesto do Coletivo Combahee River estava muito longe da intenção dos identitários brancos da Europa, Estados Unidos, Canadá e Oceania, por motivos igualmente óbvios: a ênfase na identidade branca é baseada em uma suposição de superioridade enquanto brancos, ao passo que a ênfase na identidade negra em Du Bois, e negra, feminina e lésbica nas militantes do Combahee River, é baseada em um enfrentamento a opressão que sofriam, enquanto negros, e enquanto mulheres negras lésbicas. Em seguida, tem-se que o foco na própria identidade adotado tanto por Du Bois quanto pelo Combahee River não tinha por intenção dar a opressão que os negros e que as mulheres negras lésbicas sofriam uma atenção especial, a intenção era na verdade o contrário: era responder aos que acreditavam que a preocupação com a situação dos negros, e das mulheres negras lésbicas, merecia ficar em segundo plano.

No entanto, apesar da intenção geral tanto de Du Bois quanto do Coletivo Combahee River e de suas propostas identitárias não ser a divisão interna dos grupos historicamente oprimidos devido a ênfases em suas próprias identidades, este acabou sendo um de seus resultados mais perceptíveis atualmente, de modo que até mesmo entre as vertentes mais radicais da luta socialista anti racista tal ênfase vem sendo duramente criticada, como desagregadora da solidariedade entre os diversos grupos oprimidos, apesar de muitas destas críticas erroneamente culparem o liberalismo pelo espaço que as pautas identitárias têm ganhado no debate público. Que culpa o liberalismo tem, se identitários se utilizam do tão famigerado mercado para se promoverem? Ademais, o mercado, enquanto livre, possui a virtude de ser aberto a todos, e apesar da utilização identitária do mercado para auto promoção, não há nada de liberal no identitarismo. É um pensamento na prática desrespeitoso ao indivíduo, que é a base do pensamento liberal.

Em resumo: identitários são aqueles que acreditam que uma identidade comum, baseada em raça, etnia ou grupo nacional (ou até mesmo gênero e sexualidade nos dias de hoje) deve ser tomada como a principal base para as pessoas de alguma maneira vinculadas a estes grupos. Sua origem remonta aos movimentos brancos. Apesar disso, suas estratégias foram adotadas por movimentos negros em busca de uma segura auto afirmação individual e coletiva, através de uma identidade comum com a cor de pele negra.

Sendo assim, os identitários negros são aqueles que acreditam que a pele negra em comum deve ser tomada como a base comum para as pessoas negras. A crítica a tal da “palmitagem” é uma das principais expressões do identitarismo negro, já que manter relacionamentos apenas com outros negros seria vital para manter a identidade negra em comum. Há também diversas outras formas de identitarismo negro, como o orgulho por características físicas negroides, a consideração de maior autoridade intelectual das pessoas negras para discussão de temas relacionados a vida dos negros, etc.

E, relembrando, apesar de ser um conceito do século XX, ideias, atitudes e posturas que podem muito bem ser chamadas de identitárias já existiam e eram postas em prática bem antes, ainda no século XIX, de Douglass. A famigerada KKK é um exemplo de identitarismo, branco protestante sulista no caso. Mal comparando obviamente, mas os negros que criticaram a “palmitagem” de Douglass também podem muito bem ser considerados exemplos de identitários, negros no caso. Douglass deste modo esteve em conflito direto tanto contra o identitarismo branco, tendo sido um dos mais ferozes combatentes públicos contra a KKK, quanto contra o identitarismo negro, tendo também o combatido publicamente de forma bastante áspera. A luta de Douglass contra o identitarismo branco já é famosa. O restante deste texto tratará do duelo de Douglass contra os identitários negros.

 

Frederick Douglass vs Identitários Negros

O episódio de “palmitagem” de Douglass, e os repúdios públicos que ele suscitou entre vários negros nos Estados Unidos da época, e que muito provavelmente suscitaria entre diversos movimentos negros no Brasil atualmente, eram no entanto parte de um duelo maior entre Douglass e muitos dos demais negros dos Estados Unidos no fim do século XIX. Observando-se a trajetória de Douglass, uma de suas características que mais salta a vista é o valor que ele dava a comum humanidade, independente de cor, sexo, nacionalidade, religião, etc., compartilhada por todos os indivíduos, como a melhor e mais segura base para defesa da liberdade e da justiça. Também é bastante característico de Douglass a sua defesa da valorização dos indivíduos (novamente, independente de cor, sexo, nacionalidade, religião, etc) através de seus méritos pessoais. O ideal para Douglass era que cor, sexo, nacionalidade, religião, etc. não fossem barreiras para o reconhecimento de comum humanidade entre os diferentes indivíduos, e nem fatores para (des)valorização do desenvolvimento individual na sociedade. Isto na sua época entrou, e também entraria na época atual, em conflito direto com as ideias de diversos outros negros para os quais o foco de reconhecimento comum e de valorização do indivíduo negro não deveria ser a humanidade em comum e o desenvolvimento individual, mas sim e para ambos os casos, uma característica específica: a cor de pele negra. Douglass obviamente não deixou sem respostas este pensamento tão avesso a tudo pelo que ele lutou a vida inteira. Como foi citado várias vezes no resumo da vida de Douglass no começo deste texto, sua causa não era para com os negros apenas, mas para com a humanidade.

Deixemos que as palavras de Douglass falem por ele. Assim,  trago primeiramente um trecho de The Nation’s Problem, um clássico discurso de 1889, no qual Douglass discorre de forma crítica sobre os problemas dos Estados Unidos de então (como preconceito e discriminação racial), e sobre como os negros se posicionavam diante deles:

“Nossa cor é presente do Todo-Poderoso. Não devemos ter orgulho nem vergonha disso. Mas podemos muito bem ficar orgulhosos ou envergonhados quando nós mesmos alcançamos o sucesso ou falhamos. Se o sol encaracolou nosso cabelo e bronzeou nossa pele, ele que se orgulhe de sua conquista, pois não fizemos nada por isso de uma forma ou de outra. Não vejo nenhum benefício a ser derivado desta exortação eterna por oradores e escritores entre nós para o cultivo do orgulho racial. Pelo contrário, vejo nisso um mal inegável. É construída sobre uma falsa fundação. Além disso, vai contra o que lutamos e pelo que lutamos neste país. Qual é o diabo da montanha, o leão no caminho do nosso progresso? Qual é, senão orgulho racial americano, uma suposição de superioridade com base na raça e na cor? Não sabemos que cada argumento que fazemos e cada pretensão que criamos em favor do orgulho racial está dando ao inimigo um pedaço de pau para quebrar nossas próprias cabeças?

Mas pode-se dizer que devemos diminuir o orgulho racial dos brancos cultivando o orgulho racial entre nós. A resposta para isso é que os demônios não são expulsos por Belzebu, o príncipe dos demônios. O homem branco mais pobre e mesquinho, bêbado ou sóbrio, quando não tem mais nada para elogiar-se, diz: “Eu sou um homem branco, eu sou”. Todos nós podemos ver a baixeza alcançada por esse tipo de orgulho racial, e ainda assim o encorajamos quando nos orgulhamos do fato de nossa cor. Ouvi um negro dizer: “Sou negro, sou.” Deixe-nos longe desse absurdo arrogante. Se estivermos orgulhosos, que seja porque tivemos alguma atuação numa produção da qual podemos nos orgulhar. Não nos orgulhemos daquilo que não podemos ajudar nem atrapalhar. A Bíblia nos coloca na condição respectiva a do leopardo, e diz que não podemos mudar mais a cor da nossa pele do que o leopardo as suas manchas. Se tivermos a infelicidade de ser colocados entre um povo para o qual nossa cor é um símbolo de inferioridade, não há necessidade de nos tornarmos ridículos, porém incessantes, em palavrórios, fingindo estar orgulhosos de uma circunstância devida a nenhuma virtude em nós, e sobre a qual não temos controle.

Vocês irão, talvez, pensar que esta crítica é desnecessária. Minha resposta é que a verdade nunca é desnecessária. O pensamento correto é essencial para a ação correta, e espero que, doravante, possamos ver a sabedoria de basear nosso orgulho e complacência em coisas substanciais.

Em alguns de nossos jornais de público negro, eu me vi acusado de falta de orgulho racial. Não tenho vergonha dessa acusação. Não tenho nenhum pedido de desculpas ou justificativa a oferecer. Se cinquenta anos de dedicação intransigente à causa do negro neste país não me justifica, estou contente em viver sem justificativa. Embora eu não tenha mais motivos para me orgulhar de uma raça do que de outra, ouso dizer, e não temo nenhuma contradição, que não há outro homem nos Estados Unidos mais orgulhoso do que eu de qualquer grande conquista, mental ou física, da qual qualquer homem ou mulher negro é o autor. Não porque eu seja um homem negro, mas porque sou um homem; e porque a cor é uma desgraça e é tratada como um crime pelo povo americano”.

Douglass continuou confrontando o que julgava ser um excessivo foco racial entre os negros da época até os seus últimos anos. É o que se pode observar em outro clássico discurso, Blessings Of Liberty And Education, de 1894, um ano antes de sua morte, pronunciado no evento de fundação de uma escola técnica para jovens negros, no qual Douglass louva os benefícios da educação técnica para estes, e reserva a parte final para fazer novamente duras críticas a postura de vários negros de então:

“Não hesito em dizer que acho que as pessoas negras e seus amigos cometem um grande erro ao falar tanto de raça e cor. Não conheço essa base para reivindicações de justiça. Não conheço nisso um motivo de esforços para o auto aperfeiçoamento […] RAÇA, no sentido popular, é estreita; a humanidade é ampla. Aquela é especial; a outra é universal. Uma é transitória; a outra é permanente. Na dignidade essencial do homem como homem, encontro todos os incentivos e aspirações necessárias para uma vida útil e nobre. O homem é amplo e alto o suficiente como plataforma para você, para mim e para todos nós.

[…]

Desde a emancipação, muito ouvimos falar dos nossos modernos líderes negros elogiando o orgulho racial, o amor racial, o esforço racial, a superioridade racial, os homens da raça e outros. Um homem é elogiado por ser um homem da raça e outro é condenado por não ser um homem da raça. […] É um esforço para expulsar Satanás por Belzebu. Os males que agora estão esmagando o negro na terra têm suas raízes e seiva, força e propulsão, nesse espírito estreito de raça e cor, e o negro não tem mais direito de escusá-lo e promovê-lo do que homens de qualquer outra raça. Não reconheço e não adotei uma base estreita para meus pensamentos, sentimentos ou modos de ação. Eu me colocaria e colocaria vocês, meus jovens amigos, em terrenos muito mais altos e amplos do que qualquer outro fundado em raça ou cor. Nenhuma lei, aprendizagem, nem religião, dirige-se à cor ou raça de qualquer homem.  A ciência, a educação, a Palavra de Deus e todas as virtudes conhecidas entre os homens são recomendadas a nós, não como raças, mas como homens. Não somos recomendados a amar ou odiar nenhuma variedade particular da família humana mais do que qualquer outra. Não o somos como etíopes, como caucasianos, como mongóis, não devemos ser tratados como afro-americanos ou anglo-americanos, mas como homens. […] Para aqueles que estão tagarelando eternamente sobre homens de raça, devo dizer: senhores, reflitam sobre seus melhores amigos. Não foi a raça ou a cor do negro que ganhou para ele a batalha da liberdade. Essa grande batalha foi vencida, não porque a vítima da escravidão era um negro, mulato ou afro-americano, mas porque a vítima da escravidão era um homem […] e, portanto, deve ser reconhecido como um ser responsável, um sujeito do governo e com direito à justiça, liberdade e igualdade perante a lei […] O homem viu que tinha direito à liberdade, à educação e a oportunidades iguais às de todos os outros homens na corrida comum da vida e na busca da felicidade.

[…]

Correndo o risco de ser deficiente na qualidade do amor e da lealdade à raça e à cor, confesso que, em minha defesa da causa do homem negro, seja em nome da educação ou da liberdade, falei mais sobre a masculinidade e do que é compreendido na masculinidade e na feminilidade, do que o mero acidente de raça e cor; e, se isso for deslealdade à raça e cor, sou culpado. Insisto em que a lição que as pessoas negras, não menos que os brancos, devem aprender agora é que não há qualidade moral ou intelectual na cor da cutícula de um homem; essa cor, em si mesma, não é boa nem má; que ser preto ou branco não é uma fonte adequada de orgulho ou vergonha. Vou mais longe e declaro que a devoção de ninguém à causa da justiça, liberdade e humanidade devem ser pesadas, medidas e determinadas por sua cor ou raça […] Nunca devemos esquecer que as vozes mais hábeis e eloqüentes já levantadas em nome da causa do homem negro, foram as vozes dos homens brancos […] Nem Phillips, nem Sumner, nem Garrison, nem John Brown, nem Gerrit Smith eram negros. Eles eram homens brancos, mas nenhum homem negro jamais foi mais fiel à causa do homem negro do que estes e outros homens como eles.

[…]

Minha posição é que é melhor nos considerarmos como parte do todo do que como, do todo, uma parte. É melhor ser um membro da grande família humana do que um membro de uma variedade particular da família humana. Em relação aos homens e em relação às coisas, o todo é mais do que uma das partes. Afasto-me, então, do absurdo de que um homem deve ser negro para ser fiel aos direitos dos homens negros. Eu pisoteio o esforço de traçar linhas entre o branco e o preto, ou entre negros e os chamados afro-americanos, ou traçar linhas de raça em qualquer lugar no domínio da liberdade. A quem quer que seja por direitos iguais, educação igualitária, oportunidades iguais para todos os homens, de qualquer raça ou cor – eu o saúdo como um compatriota, colega de clã, parente e irmão amado”

 

Conclusão: Douglass acertou ou errou?

Para nós (pois eu me incluo) que acreditamos que a comum humanidade está, como referência para direitos, liberdades e justiça, acima e a frente de cor de pele, que acreditamos que cor de pele,independente de qual for, não é motivo para orgulho ou vergonha, que acreditamos que tomar cor de pele como critério para (falta de) empatia social e (falta de auto) valorização individual é um extremo da baixeza, que acreditamos que diferença de cor de pele entre pessoas que se relacionam não é motivo para “cancelamento”, que acreditamos que não se deve tomar cor de pele como peso ou medida para qualquer coisa que defendemos, para nós, Douglass acertou e é de extrema atualidade. Já para aqueles que não acreditam em nada disso, Douglass errou e seria novamente “cancelado”.

É verdade que não foram os negros que começaram com este pensamento e comportamento. Como já foi citado, as raízes do identitarismo são brancas. Também é verdade que durante décadas e séculos foram eles, e continuam até hoje sendo eles, as vítimas de brancos com este pensamento e comportamento. É então assim argumentado que a forma de combater este pensamento e comportamento entre brancos seria, por sua vez, se orgulhar dos traços negroides, se restringir a relacionamentos com apenas outros negros, se tomar a cor de pele negra como parâmetro de valor, inclusive de valor de ideias e argumentos. Seria um “vencer no jogo deles”, como diria Killmonger, o personagem antagonista do aclamado filme Pantera Negra, que adota este pensamento. Foi essa a intenção dos que acusaram Douglass de falta de orgulho racial, é essa a intenção de quem hoje o cancelaria por palmitagem e pelas suas ásperas críticas acima citadas. Pode-se obter resultados positivos desta forma de pensar e se comportar? Até que sim. Deixar de ter vergonha da pele negra, de ver a pele negra e os traços negroides como inferiores e desprezíveis, deixar de ver na pele negra um motivo de insegurança, deixar de desvalorizar as ideias e argumentos vindos de negros, são com certeza resultados positivos. Tais, talvez, tenham até sido inclusive os argumentos que Douglass deve ter ouvido.

Mas, como claramente apontou Douglass, isto no fim das contas não resolveria o problema, pois isto seria justamente parte do problema. Não há nada na cor da pele, seja ela qual for, que seja motivo de orgulho ou vergonha, de prezo ou desprezo, de segurança ou insegurança, de validade ou invalidade de ideias e argumentos. Adotar raça como parâmetro identitário, seja ela qual for, é uma forma de coletivismo baixa, baseado em características superficiais, como cor de pele e traços físicos em geral, que no fim das contas não deveriam dizer nada sobre ninguém, nada que mereça ser levado a sério.

Douglass com toda certeza descansa em paz em seu túmulo sem maiores preocupações em relação a aqueles que o cancelariam atualmente. Mas é impossível ver negros falando de palmitagem e orgulho racial sem pensar no quanto um Douglass faz falta…

 

Referências

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– DOUGLASS, Frederick. A Narrativa da Vida de Frederick Douglass. Disponível em: https://www.academia.edu/27886829/A_Narrativa_da_Vida_de_Frederick_Douglass_um_Escravo_Americano

– DOUGLASS, Frederick. Life And Times Of Frederick Douglass. Disponível em: https://docsouth.unc.edu/neh/dougl92/dougl92.html

– DOUGLASS, Frederick. O Futuro da Raça Negra. Disponível em: https://pt.wikisource.org/wiki/O_Futuro_da_Ra%C3%A7a_Negra

– DOUGLASS, Frederick. The Nations Problem. In The Essential Douglass: Selected Writtings and Speeches.

– DOUGLASS, Frederick. Blessings of Liberty And Education. Disponível em: https://teachingamericanhistory.org/library/document/blessings-of-liberty-and-education/

– DU BOIS, Web. The Conservation of Races. Disponível em: https://teachingamericanhistory.org/document/the-conservation-of-races/

– Identitarian Movement. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Identitarian_movement

– Identitarismo: A Nova Cara do Liberalismo. Disponível em: https://lavrapalavra.com/2020/11/25/identitarismo-a-nova-cara-do-liberalismo/

– HANSEN, Heather Baukney. Right is of No Sex. Truth is of No Color. Disponível em: https://alumnae.mtholyoke.edu/blog/right-is-of-no-sex-truth-is-of-no-color/

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– HORNE, Gerald. W.E.B Du Bois: A Biography. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4181955/mod_resource/content/1/DuBois_Biography.pdf

– KENNEDY, Randall. Interracial Intimacies: Sex, Marriage, Identity, and Adoption. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=dy5pJ26JIvUC&printsec=frontcover&dq=Interracial+Intimacies:+Sex,+Marriage,+Identity,+and+Adoption&hl=pt-PT&sa=X&redir_esc=y#v=onepage&q=Interracial%20Intimacies%3A%20Sex%2C%20Marriage%2C%20Identity%2C%20and%20Adoption&f=false

– SUNDSTROM, Ronald. Frederick Douglass. Disponível em: https://plato.stanford.edu/entries/frederick-douglass/