Sombra soturna, por Bruno Holanda

September 24, 2019

Sempre que ligava a TV e nela estava passando o jornal, via cenas lamentáveis de violência e barbárie nos confins do mundo. Naqueles lugares onde parece que o sol não bate, onde nada parece florescer para além da maldade humana e o descaso dos que podem mudar. Nesses momentos me peguei pensando como poderia ajudar, mas não ajudei. Era tão longe, tão difícil de se resolver e minha ajuda era tão ínfima que de nada adiantaria. Preferi seguir minha vida. Ora, eu mesmo tinha minha cota de problemas. A conta de luz atrasada, a internet cortada por falta de pagamento e essas coisas que um homem branco de classe média no Rio de Janeiro tem que suportar para viver.

E na era digital, onde a informação chega mais rápido, onde o mundo acelera e o tempo nos escorre pelos dedos, sempre parece que chegamos atrasados. Quando resolvia ajudar alguma causa, outra já tinha tomado seu lugar e até que meus esforços no trabalho valessem a conta de luz, a de internet e os demais boletos que me chegavam, perdia o interesse e tomava conta da minha vida.

Um dia, aqueles lugares em que o sol não bate e coisas horríveis acontecem foi alargando. Ou o sol estava ficando menor, ou a sombra da maldade aumentava. Mas ainda estava longe e meus boletos perto demais do vencimento.

Porém certo dia abri o jornal, num desses portais modernos de notícias da internet que mostram informação do mundo todo. Na parte onde costumavam haver absurdos das partes longínquas do mundo, estava minha cidade. Já havia percebido que aquela sombra chegara à minha cidade, porém estava nos morros lá no alto, nas periferias. Pensei que esses lugares não passassem de ilhas de caos em meio à civilização ocidental, mas percebi que vivo também na barbárie e que lá da Europa, algum alemão fala com algum francês dos absurdos daqui.

Mas não parou por aí. Nem meus boletos pararam e eu não fiz nada. Ora, talvez aquele episódio tivesse sido um mero acaso, desses que acontecem só uma vez na vida da gente. Eu, que cogitara ir à África quando mais jovem e não tive tempo, agora mais velho me parece igualmente difícil ir até o morro para ajudar. Lá é tão longe, contra-mão, não tem ônibus direto, o trânsito é péssimo.

Essa semana enquanto me preocupava com minha vida e andava pelas ruas, aquela máscara blasé que me cobria a face deu uma vacilada. Ao passar por uma banca de jornal no centro da cidade, vejo a notícia de mais uma pessoa morta por uma arma de guerra, porém o que me chama atenção é o local. Dessa vez é perto da minha rua, num lugar que passei outro dia.

Nesse exato instante, a tal fantasia blasé se despedaça e ao cair no chão rompe o tecido fino que me impedia de sujar os pés com a lama do mundo real. E quando olhei essa lama, era vermelha e fedia à sangue. Ora, talvez agora eu perceba que nesse momento para o resto do mundo, eu vivo num daqueles lugares longínquos onde aqueles povos atrasados cometem aquelas barbáries. Percebo logo depois que faço parte agora daqueles povos bárbaros e atrasados do resto do mundo.

Olho para os lados e percebo que ninguém mais está horrorizado, todos estão resolvendo suas vidas, pagando seus boletos. A pessoa morta era uma criança, uma menina. Talvez uma futura bailarina do Teatro Municipal, que não fez nenhum mal a não ser o fato de ser pequenina.

Tudo isso aconteceu enquanto eu me preocupava com a conta de luz, uma coisa que parece agora tão pequena. Será que mais gente perceberá que essa sombra não vai parar de avançar a menos que façamos algo, será que essa consciência nos atingirá antes que eu, que cuidava apenas da minha vida, seja a próxima vítima ou será que já é tarde? Como disse antes, nesses tempos modernos que tudo corre tão rápido, sempre estamos atrasados.