Sobre a “milícia” religiosa do DF, as comunidades terapêuticas e os Direitos Humanos

August 11, 2020

A jornalista Amanda Audi revelou, em matéria publicada no The Intercept Brasil, que um grupo religioso está utilizando viaturas e fardas para abordagens em Ceilândia e no Sol Nascente, aqui no Distrito Federal. O intuito é de pregação, mas também de tentar convencer usuários de drogas a se internarem em comunidades terapêuticas cristãs.

Vendo os vídeos, realmente é difícil discernir entre viaturas da Polícia Militar e aquelas usadas pelo grupo, que se intitula Patrulha da Paz. As viaturas estão adesivadas, há uso de giroflex e foram até adaptadas para terem uma “gaiola” na parte traseira. Já os “agentes” fazem uso de farda, colete e até distintivos. A estética é militarizada.

Enquanto morador do Distrito Federal a denúncia me chocou e fiquei grato em saber que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do DF já encaminhou a denúncia ao Ministério Público. Aliás, transcrevo parte da denúncia assinada pelo presidente da comissão, deputado Fábio Felix (PSOL):

“O uso de vestimentas e veículos caracterizados como oficiais e de caráter policial nesse contexto nos parece ter o objetivo de confundir a população, especialmente as pessoas mais vulneráveis, usando um poder de coerção próprio do Estado que não é atribuído a uma organização da sociedade civil. Vemos indicativos de que ocorreriam violações de direitos humanos na atividade desse grupo e a possibilidade de que ocorreriam atividades ilegais.”

Concordo com o deputado. O uso das vestimentas e viaturas parece ter um claro objetivo de confundir pessoas em situação de vulnerabilidade como forma de forçar internações em comunidades terapêuticas sem nenhuma decisão judicial (cuja fundamentação já é frágil, no mínimo) ou orientação médica. Tudo isso simulando ser, mesmo que não o digam, aparato estatal.

Estamos diante de um grupo que atua, conforme a matéria de Amanda Audi, pelo menos desde 2011, no que ela corretamente chamou de “evangelização por intimidação”. Resta saber por que as reais forças de segurança do Distrito Federal nunca agiram para coibir a prática não só abusiva, mas que esbarra na própria Lei. Como bem levantado pela jornalista, “A lei de contravenções penais estabelece nos artigos 45 e 46 que é crime fingir ser funcionário público ou usar, publicamente, uniforme ou distintivo de função pública que não exerce.”

As questões aqui são várias, mas acredito que a principal delas seja a percepção por parte deste grupo de que são livres para agirem como se agentes do Estado fossem, na clara tentativa de intimidar pessoas em situação de rua e usuários de drogas a se internarem ou a serem “evangelizados”. Há uma confusão patente, rotineira nos dias de hoje, entre religião e Estado. Afinal, esse grupo acredita estar fazendo o papel que o próprio Estado é incapaz de fazer.

Dado o tempo em que estão atuando dessa forma (quase 10 anos), temos que nos perguntar se não contam com uma condescendência do Estado. É preciso que as autoridades públicas do Distrito Federal esclareçam por que não atuaram até hoje para impedir que um grupo se passe por força de segurança para coagir pessoas em situação de rua a se internarem contra sua vontade. Afinal, não sendo esse o objetivo, por que adaptar as viaturas para que tenham “gaiolas” ao fundo? Por que fardas e coletes? Que poder tem o grupo de restringir a liberdade dos outros?

Não é de hoje que questões envolvendo grupos religiosos e comunidades terapêuticas vão parar nos jornais por conta de violações de direitos humanos. O Ministério Público Federal realizou em 2018, através de ação coordenada pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, uma inspeção nacional em comunidades terapêuticas de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Distrito Federal.

Conforme o próprio Ministério Público, foram identificadas práticas como “castigos físicos, privação de liberdade, violação à liberdade religiosa, trabalhos forçados e sem remuneração, além de conduções à força para internação – por meio do uso de contenção física ou medicamentosa.” Dentre as sanções aplicadas a internos apontadas pela Procuradoria estão práticas como supressão de alimentação, violência física, isolamento por longos períodos, privação de sono e uso irregular de amarras ou medicamentos.

A verdade é que pelo caráter religioso dos grupos parece haver uma espécie de “vista grossa” por parte de governos (municipais, estaduais, distrital e federal) com as tais comunidades terapêuticas. Famílias que sofrem com parentes em dependência química, ao não encontrarem muitas vezes apoio no Estado, entregam desesperadas entes queridos para esses grupos. O Estado, que prefere seguir com a burra política de guerra as drogas, não é capaz de construir uma política pública que entenda o problema pelo que ele é: uma questão de saúde pública. É aliás bastante revelador que a tal Patrulha da Paz simule ser força de segurança. Afinal, essa é a visão sobre a problemática das drogas no Brasil: de que é matéria de polícia.

O que não pode ser permitido por aqueles que defendem a liberdade é que tais práticas sigam acontecendo sob os olhos do Estado, que – diante da sua incapacidade para lidar com a questão – vira os olhos para práticas que podem ser caracterizadas como tortura e que são perpetradas contra pessoas em situação de vulnerabilidade.

Não basta apenas que o Ministério Público faça sua parte, mas que gestores tenham critérios maiores ao firmar parcerias (inclusive com repasse de recursos públicos) com essas entidades. No caso dos Patrulheiros da Paz, é preciso que o Governo do Distrito Federal se posicione claramente para explicar i) por que providências nunca foram tomadas para coibir esses abusos; e ii) quais providências serão adotadas para que isso não aconteça mais.

Sei que esse tipo de coisa não está na moda, mas Direitos Humanos existem para proteger indivíduos do arbítrio e garantir a dignidade humana a qual todos temos direito. A promoção dessa dignidade é um compromisso com a liberdade individual e com um país mais justo.