Livres para ‘palmitar’: por um amor sem cor

June 19, 2020

O dia dos namorados não serve apenas para contemplar manifestações amorosas entre casais que tomam conta das redes sociais para prestar homenagens àqueles que compartilham momentos de afeto, carinho e, principalmente, amor. Ele também serve como um despertador para aqueles que chamarei de fiscais de cor.

Não conhecia essa profissão? Pois é. Provavelmente você nunca ouviu falar nessa graduação, mas o fato é que os fiscais de cor existem e atuam incansavelmente na observação, julgamento e condenação de casais interraciais, isto é, aqueles formados por indivíduos de cores distintas.

A pena aplicada varia conforme o fiscal. Uns restringem-se à aplicar uma autuação individual e discreta, outros optam pela exposição do criminoso que ousa se apaixonar por alguém que não possui a mesma cor que a sua. Aliás, indivíduos negros, homens ou mulheres, reivindicam ao longo de toda história no país uma única palavra: liberdade. Queremos liberdade para estudar, para empreender, para trabalhar, para ir e vir, para vestir, para viver. Mas exigir liberdade para amar, segundo os fiscais de cor, já seria demais.

Acontece que a atuação dessa nova classe de profissionais é baseada num termo cunhado como “palmitagem”: o ato de um homem negro se envolver amorosamente com uma pessoa branca. A argumentação é a seguinte: o homem negro, ao optar por se relacionar com uma pessoa branca, está cedendo a um estereótipo criado pelas instituições historicamente racistas, como a mídia e a sociedade, por exemplo, que estipularam pessoas brancas como o padrão de beleza a ser imposto, excluindo pessoas negras dessa normalidade, culminando na rejeição amorosa.

Trocando em miúdos, partem do pressuposto que pessoas negras sempre serão preteridas em relações afetivas. Você deve estar se perguntando: mas e as mulheres negras, como a Glória Maria? Bem, daí varia do fiscal. Alguns, as julgam igualmente por serem cooptadas pelas estruturas de poder estéticas universais, enquanto outros as poupam da condenação, partindo de um pressuposto de que, por acumularem, simultaneamente, a questão racial e de gênero, elas não possuem o “privilégio” de escolha. Ou seja, se uma mulher negra namora um homem branco, é porque ela foi escolhida.

A lista de “palmiteiros” é extensa. De Pelé a Nego do Borel. Homens negros que, após ascender socialmente, abandonam as suas “irmãs de cor” para ir em busca do coroamento final: a mulher branca. Se você está pensando que esse tipo de pensamento é muito próximo ao aterrorizante regime do apartheid sul africano, você não está sozinho. Se você se sentiu, mesmo que por um instante, no calor de uma fazenda do Texas (EUA), no século XX, você também não está sozinho. O conceito de palmitagem além de ser repulsivamente machista, colocando as mulheres em situações de mercantis e objetificadas, gera um sentimento tácito de que mulheres negras ficam eternamente abandonadas, isoladas e tristes caso um homem negro não faça do amor um ato político.

Cabe ressaltar que essas mulheres chefiam grande parte de seus lares com faixas de renda baixas e compõem o maior número de empreendedores no país. Se tem uma coisa que não combina com mulheres negras é qualquer termo que as associem como dependentes ou incapazes. Quanto aos homens negros, é impressionante como precisam sempre estar subservientes a determinado alguém. Antes, era questão econômica, não humanitária. Hoje, ainda que libertos das atrocidades do castigo físico escravocrata, as amarras tornaram-se ideológicas. Homens negros sendo reféns à vontade de outrem. Meros soldados de um exército segregacionista que atrela a liberdade de escolha ao ideal coletivista.

Homens e mulheres negras devem levar as suas vidas como bem quiserem. Somos fruto de um povo que luta constantemente contra um status-quo que nos impede atingirmos a plenitude e a responsabilidade que habita na palavra liberdade. Que Marcus Garvey me desculpe, mas é nela que eu quero morar. E, se for do meu desejo, palmitar.