“Epidemia” de liberdade de gênero?

August 24, 2020

O jornal Gazeta do Povo publicou no final do último mês uma matéria intitulada “Danos irreversíveis: o livro que denuncia a epidemia transgênero entre as adolescentes”, que gerou polêmica nas redes sociais. O texto afirmava:
Uma epidemia silenciosa está se espalhando entre as adolescentes, e os pais não têm a quem recorrer para impedi-la. É a epidemia das garotas que, subitamente, sem qualquer sinal prévio, passam a identificar como transgênero.”
Então, fui checar a veracidade das informações e me deparei com os seguintes fatos:
O livro que fala sobre a questão baseou-se em uma pesquisa realizada online apenas com pais de apenas 257 adolescentes. Como levar a sério uma pesquisa com um recorte tão limitado, que não ouviu as próprias pessoas trans que vivenciaram o processo de transição de gênero?
Confesso que perdi meu interesse em aprofundar e dar palanque para uma tosquice dessas, com viés claramente ideológico com interesse em causar preocupações alarmistas e insanas na sociedade. Segue a mesma linha de alguns psicólogos que ainda perseguem a  “cura gay” para homossexualidade, mesmo ela tenha deixado a lista de doenças da OMS há mais de 30 anos.
Mas algo, baseado não em pesquisas tendenciosas, mas na realidade, é verdade. O número de pessoas trans, principalmente homens trans, aumentou bastante na últimas décadas. Fiz parte do primeiro clube de transgêneros do Brasil fundado em 1997. No auge, chegou a ter 1200 membros, deste total, apenas 5% eram de homens trans. O primeiro homem trans a ganhar visibilidade foi João Nery, já no século XXI, apesar de ter realizado a cirurgia de readequação sexual no auge da ditadura militar.
Quais as razões para esse aumento significativo? Não existiam pessoas trans no passado? Isso é algo recente? A transgeneridade é algo milenar, comprovado historicamente. É algo inerente ao nosso ser. A grande maioria se reconhece trans na primeira infância, mas entre se reconhecer e viver plenamente, geralmente existe uma longa, dolorosa e árdua distância.
Com a chegada da internet, houve um salto na conexão de pessoas e de informações. Pessoas, que antes viviam isoladas nas suas comunidades locais, agora tem o mundo para interagir. Troca intensa de experiências e vivências e acesso facilitado ao conhecimento e pesquisas. Os “divergentes” poderiam se conhecer e formar comunidades sejam elas físicas ou virtuais.
Com nessa nova realidade, transgêneros começam a sair do closet (me permitam essa liberdade poética, sou arquiteta!) e perceberam que a possibilidade de viver a sua transgeneridade era real. Um efeito cascata foi espalhando-se por todo o planeta. A liberdade de “ser” estava posta e alcançável.
As conquistas civilizatórias como o direito a mudança de nome e gênero nos documentos e a saída da transgeneridade da lista de doenças mentais da OMS em 2019 também ajudaram bastante nessa conquista do espaço na sociedade.
Então, o que acontece hoje é que grande parte das pessoas trans perceberam que não é um sonho maluco reivindicar seu direito indiscutível de viver plenamente conforme seus desejos e crenças.
No lugar de “epidemia”, que pode levar a uma idéia de algo negativo, como foi colocado no artigo, eu trocaria por: Catarse de liberdade de gênero.