Declaração de Bolsonaro sobre vacinas e Aids: comentários sobre uma homofobia latente

October 26, 2021

Bolsonaro disse, em uma live na última quinta-feira (21), que leu indícios de que a vacina contra a Covid-19 pode causar o desenvolvimento da síndrome de imunodeficiência, Aids. A declaração foi lida em questão de minutos, mas conteve imensas implicações e gerou massiva e imediata repercussão.

Veículos de mídia social reagiram com prontidão. A live foi rapidamente removida pelos veículos de mídias sociais Facebook e Instagram, devido a políticas de combate a notícias falsas. Essa foi a primeira vez em que uma live de Bolsonaro foi banida do Facebook. A atitude foi rapidamente seguida pela remoção do vídeo por parte doYoutube, por violação de políticas de fake news, bem como pela proibição de postar vídeos por uma semana. O Twitter demarcou o vídeo como desinformação, mas não removeu o conteúdo, por acreditar que a exposição pode ser de interesse público.

O ocorrido repercutiu politicamente – e nada favoravelmente a Bolsonaro. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, disse à CNN nesta última terça-feira (25) que o Presidente da República vai “pagar” se a declaração não tiver base científica. A CNN entrou em contato com o parlamentar para obter um esclarecimento sobre o pronunciamento – uma vez que Arthur Lira é responsável por desarquivar os pedidos de impeachment contra o Presidente -, mas não obteve resposta.

A declaração foi incluída no escopo do relatório da CPI da Covid, votado nesta terça-feira (26), como evidência do desincentivo à vacinação por parte do chefe de Estado por meio da propagação de desinformação. Ainda nesta terça-feira (26), o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso disse que pretende acatar notícia-crime contra o presidente Bolsonaro, submetida pela bancada do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) na Câmara dos Deputados e pelo deputado Túlio Gadelha (PDT/PE), por violação ao artigo do Código Penal que veda a exposição “da vida ou a saúde de outrem a perigo direto e imediato”.

A gravidade na fala de Bolsonaro toma múltiplas direções. Em um país acometido por uma pandemia que atingiu a marca de seiscentas mil mortes, desincentivar a vacinação é obra de um chefe de Estado sádico, que já não se importa com as consequências humanas daquilo que declara. Lembremo-nos que Bolsonaro foi o único chefe de Estado não vacinado a aparecer em um encontro da Organização das Nações Unidas, ocorrido há algumas semanas na cidade de Nova Iorque. Só esse feito rendeu máculas irreparáveis à imagem diplomática brasileira, além de servir de material pronto às obras satíricas da imprensa local. O presidente brasileiro chegou a receber um pitaco do primeiro-ministro britânico Boris Johnson, que tomou as duas doses da Astrazeneca. Mas se Bolsonaro não dá ouvidos a Johnson, que representa a estética e o eleitorado de uma extrema-direita específica, não é à imprensa ou mesmo aos clamores da própria população que prestará atenção.

A propagação de desinformação de qualquer sorte, proferida por qualquer chefe de Estado, é inaceitável. Bolsonaro deu a entender uma admissão, há pouco, de que errou ao associar a vacina à Aids. Diminuiu o feito, afirmando que a imprensa comete erros próprios. Esta declaração é maior do que um erro: qualquer político com assessorias técnicas e rápido acesso à informação especializada não se pode dar ao luxo de errar atrozmente. Associar a vacina ao desenvolvimento da Aids – o que assusta a qualquer cientista sério por ser tão elementarmente fora do razoável -, só pode ser tido como proposital ou, no mínimo, inadmissivelmente relapso. Há erros que não são erros – são escolhas de sadismo e negligência.

A notícia propagada não é a única notícia falsa existente que se relaciona à vacinação contra o Coronavírus. Uma pesquisa feita pelo Parlamento Britânico identifica a sistemática e os tipos variados de notícias falsas espalhadas por meio de veículos de mídia social ao redor do mundo. O leque é variado e imaginativo: engloba a existência, supostamente associada aos imunizantes, de microchips inseridos na corrente sanguínea das pessoas, alterações no código genético e infertilidade. No artístico cardápio de fake news, ao qual o Bolsonarismo recorre com prodigalidade, há algo que escapa à atenção dos comentadores: a desinformação que associa a vacina à Aids é bastante específica. Dentre tantas escolhas, por que Aids? Dentre tantas mentiras, por que esta?

Aqueles que passaram pela epidemia na década de 1980 estão cientes das mazelas causadas pela desinformação. Sabem que as distorções existem ainda nos dias de hoje, nos quais uma pessoa que vive com HIV pode, com auxílio de tratamentos, viver uma vida normal e não transmitir o vírus para outras pessoas. Os tempos nos quais aproxima-se o desenvolvimento de uma vacina e de uma cura para a Aids também são os tempos nos quais o preconceito contra pessoas vivendo com HIV existe. É um simples e direto fato da sociedade, que a médica e epidemiologista Luana Araújo reconheceu dolorosamente em um vídeo postado nas suas redes sociais, na segunda-feira (25).

Há alguma estratégia na escolha de uma fake newsrelacionada à Aids e ao HIV. Lembremo-nos de que este é o presidente que declarou, em fevereiro de 2020, que as pessoas vivendo com HIV são uma despesa para a sociedade. Se o intuito de Bolsonaro era, estrategicamente, o de conclamar que um público-alvo específico não tomasse a vacina, há de se perguntar qual público-alvo era esse. Algumas hipóteses vem em mente. Certamente, o seu público-alvo não se assustaria com notícias de microchips, alterações no DNA ou mesmo infertilidade associadas à vacina. Mas contrair Aids: eis algo que, por razões sabidas mas nunca enunciadas, acometeria os seus piores pesadelos.

A homofobia de Bolsonaro é notória; a população que, proporcionalmente, mais contrai HIV também é. Essa dimensão na sua declaração, tão profunda e simbólica, é aquilo ao qual à população gay (e LGBTI em geral) já se acostumou há tempos imemoráveis. Não é novidade. Mas mostra a covardia de um presidente que não deixou para trás os tempos da escola, na qual frequentes são as intimidações sobre aqueles que são diferentes. Bolsonaro não se encontra mais no parquinho. É presidente de uma nação. Será responsabilizado pelo que diz.