Liberalismo e LGBTI

December 18, 2019

Por Lucas Almeida Franceschi

Muito se diz no meio liberal que a pauta LGBTI+ era originalmente liberal, mas que foi sequestrada, ao longo das décadas, pela esquerda. Originalmente liberal porque, de acordo com essa constatação, a tradição liberal de direitos individuais é categórica contra qualquer intervenção estatal de proibição no que tange a essas escolhas; e isso, evidentemente, abarcaria as intervenções no que tange a orientação sexual e identidade de gênero.

Antes de se entrar nesse mérito, faz-se necessário que se defina o que é “esquerda”. Se “esquerda” significa uma visão de mundo materialista, ligada a luta de classes e a uma visão arredia ao capitalismo, certamente e evidentemente os liberais não entrariam nesse rol, em um sentido acadêmico.

Mas vale lembrar, aqui, que os liberais já foram e podem continuar sendo radicais na sua oferta de visão de mundo. Nos tempos da polaridade liberal-conservador em muitos parlamentos do século XIX e XVIII, os liberais já defenderam ideias que hoje são consideradas senso-comum, revolucionárias em sua época: a defesa irrestrita das liberdades individuais, da igualdade entre os sexos e da provisao da igualdade de oportunidade.

Não menos importante é a defesa da descriminalização da homossexualidade, como o fez o autor Jeremy Bentham em seu ensaio Pederastia, em 1785. Certamente, suas opiniões acerca do assunto entravam no rol das afirmações mais radicais e revolucionárias que o mundo – ou, ao menos, a Inglaterra – havia visto àquela época. Segue um trecho:

O ato [da homossexualidade] é ao máximo odioso e repudiante, isto é, não ao homem que o faz, porque o faz somente porque o dá prazer, mas àquele que pensa sobre ele. [Aqui, Bentham deixa, entre parênteses, um ponto de interrogação, como se se questionasse qual seria o propósito de quem passaria seu tempo pensando sobre isso, se não fosse homossexual]. Seja como for, o que tem isso com ele? Ele possui a mesma razão extraordinária a fazê-lo do que eu o possuo para evitá-lo. Suponhamos que um homem ame carniça – isso seria bastante extraordinário –, isso o fará muito bem. Mas o que tenho eu com isso enquanto puder me deleitar em carne fresca? Mas tal raciocínio, quão justo, poucas pessoas possuem a calma para ter. 

Os autores liberais eram enfáticos em dizer que, pessoalmente, não eram homossexuais, mas que eram contra a criminalização da homossexualidade. Essa atitude de tolerância, que hoje parece senso-comum, à época, era um contrassenso, já que era difícil conceber que alguém defendesse algo no qual não se interessasse. O natural à época de Bentham era querer proibir aquilo de que se desgostava. Extremista era um princípio de defesa da liberdade alheia.

Bentham parece implicar, ainda, que as atitudes sociais podem cumprir um papel danoso à liberdade, por tornar “aceitável” a restrição da liberdade daquilo a que desaprova. Estendendo esse raciocínio, Bentham ataca o Rei James I:

James I da Inglaterra, um homem mais notável por fraqueza do que por crueldade, concebeu uma antipatia violenta acerca de certas pessoas que eram chamadas Anabatistas por conta de dele diferirem em matérias especulativas de religião. Como as circunstâncias da época eram favoráveis à gratificação da antipatia surgida de tais causas, ele encontrou os meios para se doar a satisfação de acometer a um deles a fogueira. O mesmo rei também possuía uma antipatia ao uso do tabaco. Mas como as circunstâncias dos tempos não doaram as mesmas pretensões nem a mesma facilidade para queimar fumantes de tabaco como para queimar Anabatistas, ele foi forçado a [somente] escrever [contra o tabaco] um livro flamejante. 

Ao sugerir que os Anabatistas puderam ser queimados porque a maioria da sociedade assim achava viável, ao passo que os fumantes não poderiam ser queimados porque a sociedade os aprovava, Bentham sugere que as inclinações da sociedade podem ser tirânicas.

Nascia as sementes de um pensamento, na tradição liberal, do que Mill desenvolveria para chamar “tirania social”. Os primeiros parágrafos do seu Ensaio sobre a Liberdade (1859) são categóricos:

A sociedade pode e executa seus próprios mandatos: e se decreta mandatos errados em vez de certos, ou quaisquer mandatos em coisas nas quais não deve se intrometer, pratica uma tirania social mais formidável do que muitos tipos de opressão política, vez que, ainda que não usualmente contida por meio de penalidades extremas, deixa poucos meios de escape, penetrando muito mais profundamente sobre os detalhes da vida, e escravizando a alma em si. Proteção, portanto, contra a tirania do magistrado não é suficiente: há de se haver proteção também contra a tirania da opinião e do sentimento vigentes; contra a tendência da sociedade de impor, por meios outros que não as penalidades civis, as suas próprias ideias e práticas como regras de conduta sobre aqueles que delas dissintam; para impedir o desenvolvimento e, se possível, prevenir a formação de qualquer individualidade que não em harmonia com seus modos, e para compelir todos os caracteres a se postarem de acordo com seu próprio modelo.  (Grifo meu)  

Portanto, enxergamos no espírito liberal duas características fundamentais relacionadas ao individualismo: a defesa radical da liberdade alheia, ainda que contrária ao espírito do tempo; e a eterna vigilância contra a tirania social, ou as normas sociais que não dependam, necessariamente, do Estado. Por isso mesmo, a radicalidade do liberalismo é presente e atual, parte do conjunto de obras que pauta a filosofia liberal.

Essa visão nada tem de antagônica com um movimento LGBTI+. Um movimento que lutaria, por um lado, pelo fim da repressão estatal à atuação e às vivências dos indivíduos LGBTI+; e que, por outro, conscientizaria a sociedade afim de mudar um preconceito que ensejaria a própria tirania social de que Mill nos avisava. É quase como se o molde filosófico para o surgimento do movimento LGBTI+ condissesse perfeitamente com essas partes da filosofia liberal.

Quando foi que houve uma captura do movimento LGBTI+ por uma visão mais materialista, que pouco tem de individualismo? E seria essa visão verdadeiramente hegemônica, ou ainda haveria espaço para resgatar as suas raízes liberais?

Para respondermos, devemos situar o marco inicial do movimento LGBTI+: as Revoltas de Stonewall.

Stonewall ocorreu no dia 30 de junho de 1969, quando os frequentadores de um bar gay da cidade de Nova York decidiram se revoltar contra uma batida policial. À época, a homossexualidade e a existência de bares gays eram proibidos na cidade.

Essa resistência a uma intrusão indevida do Estado, pautada na formulação de uma lei injusta, é liberal no sentido radical já apresentado. E isso já foi comentado, ainda que esparsamente. A crítica social Camille Paglia explica, em um vídeo junto do psicanalista Jordan Peterson, que em sua visão o espírito dessa e de outras revoltas dos anos 60 possuía, originalmente, pouco Marxismo. Em termos subjetivos, era sobre auto-descoberta; em termos políticos, era sobre a libertação de tabus e atitudes sociais repressoras. Libertação similar com a que propunha John Stuart Mill.

No entanto, os movimentos começaram a ser preenchidos com uma narrativa materialista, de luta de classes e de conflitos sociais. Na evolução acadêmica das pautas LGBTI+, as questões da comunidade começaram a ser misturadas com novas leituras relacionadas indiretamente com o sistema capitalista; na evolução ativista, começaram a ser relacionadas a uma luta anticapitalista. Grande parte da literatura, dos filmes e do material produzido acerca da história do ativismo mostra que os primeiros ativistas, desde Stonewall, eram socialistas, de forma que houve uma ligação entre movimentos sindicais, movimentos socialistas e o crescimento do movimento LGBTI+. Na academia, autores como o da Escola de Frankfurt e da Teoria Francesa, ligados direta ou indiretamente a uma visão materialista e de conflito social, influenciaram a literatura sobre o tema.

Seria complexo querer explicar por que, e quando, essa mistura entre o movimento LGBTI+ e um anticapitalismo tácito começou a ganhar força. O fato é que os últimos cinquenta anos demonstram essa ligação entre o movimento e uma visão materialista que, embora não tão firme, ocorreu de forma sutil; fazendo com que nós, os defensores da visão individualista, ficássemos para o segundo plano.

No Brasil, os primeiros partidos a tomarem posição acerca das pautas LGBTI+ foram partidos ligados a essa mesma cosmovisão, como o Partido dos Trabalhadores; ainda que Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira, tenha sido o primeiro presidente a segurar publicamente uma bandeira arco-íris. É por essa evolução complexa que as pautas de nossa comunidade passaram a ser identificadas com pautas ligadas, no Brasil, à esquerda. “Esquerda”, nesse sentido estrito, que diz respeito a uma visão acerca do capitalismo, dos mercados e do papel do Estado.

Nada impede, no entanto, a possibilidade e a necessidade de se contrapor uma outra cosmovisão, mais originária e primordial. Em um mundo em que somente 28 países aprovam o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e 8 países ainda aplicam pena de morte a pessoas gays, o papel dos liberais deve ser o de resgatar o espírito radical de defender a liberdade do indivíduo LGBTI+; seja contra o aparato estatal em outros países, ou contra o próprio preconceito social no nosso.

A economista trans Deidre McCloskey, uma das grandes expoentes contemporâneas do liberalismo, nos fala que a liberdade para ser quem se é nada tem de arbitrária: é o que aproxima um indivíduo da sua própria alma. Aprofundar nossa atuação no movimento LGBTI+ seria uma tarefa que enobreceria o nosso liberalismo, e que enriqueceria a experiência daqueles de nós que somos LGBTI+.