O que “mais valia” em Karl Marx?

May 8, 2018

Filosofia Política

“[A burguesia] Foi a primeira a provar o que a atividade humana pode realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas; conduziu expedições que empanaram mesmo as antigas invasões e as Cruzadas (…) a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras”.

Manifesto Comunista

Nesse sábado, 05 de Maio, comemorou-se – há quem o faça com grande devoção… – o bicentenário de Karl Marx. Esse prussiano, nascido em Tréveris, provavelmente foi o autor – de caráter não religioso stricto sensu – que suscitou o maior arrebatamento da história. Isto se deve à evidente secularização operada por Marx da narrativa judaico-cristã, oferecendo uma suposta explicação da totalidade do destino humano, abarcando das mais remotas eras até os dias futuros. Como sabemos, a história, segundo ele, seria dividida em fases, sujeitos e acontecimentos que podem ser facilmente assimilados à descrição sagrada: no começo a comunidade primitiva, período igualitário, anterior ao pecado capital da humanidade, ou seja, à propriedade privada; tal Paraíso adâmico, conspurcado pelo pecado original, dá ensejo à longa trajetória de sofrimento e indignidade, isto é, à luta de classes; enfim, o tempo da necessidade, opressão e infelicidade será redimido pela chegada do messias, suporte da Justiça Absoluta, encarnado pelo proletariado.

Sua teoria é assim, em verdade, uma teologia política, cujo forte apelo reside no traço messiânico da mensagem: a salvação humana é inevitável, uma revolução fará desaparecer todas as injustiças da face da Terra, varrendo do horizonte, de uma só feita, a exploração econômica e a dominação política, fazendo emergir a plenitude humana desdobrada em riqueza, liberdade e convivência pacífica. Como no messianismo cristão, tal teologia política cobra de seus seguidores uma participação em favor do Advento; no caso das ideias marxistas, os devotos são instados à luta política revolucionária, isto é, à ruptura violenta com a ordem em vigor. Todo esse desenvolvimento responderia a leis da história, portanto seria algo objetivo, exato, inquestionável.

Toda essa parafernália mítica sobre a história foi desmontada há muito, seja por pensadores como Max Weber e Georg Simmel, seja pela evolução concreta dos fatos. No que toca a este último ponto, o malogro da profecia pode ser resumida em dois aspectos fundamentais: nos países desenvolvidos os trabalhadores abandonaram a radicalidade. Inversamente à predição, os padrões inéditos de educação, renda, segurança e saúde consolidaram uma cultura democrática e tolerante, legitimadora das instituições da livre iniciativa e da política representativa. A economia de livre mercado se mostrou amplamente benéfica, originando uma demanda por maior integração ao sistema e acesso ao consumo. Já nos países subdesenvolvidos, em geral de forte tradição autoritária e poder centralizador, nos quais o apelo revolucionário se fez efetivo, o resultado da implantação de regimes inspirados em Marx foi catastrófico. Tirania e terror político, somados à miséria e empobrecimento.

Desde o fim do comunismo soviético no começo dos anos 1990, o legado do autor de O Capital sobrevive em errância mambembe. A despeito do abandono mais ou menos constrangido das teses fundamentais do corpo da doutrina, continua-se a cultuar o proponente como se não houvesse um abismo insuperável entre aquilo que previu, desejou e concebeu como um programa a ser efetivado (ditadura do proletariado, expropriação e fim das propriedades privadas, estatização da vida social, etc) e o duro aprendizado que o sofrimento de milhões de indivíduos do século XX (e ainda de outros tantos no atual) testemunha com uma melancólica tristeza. O socialismo marxista foi um retumbante fracasso.

Por isso, sem dúvida, a atitude confusa dos militantes da velha esquerda marxista em nosso tempo. Falta-lhes ideias claras a que possam se apegar. Até mesmo a “superação do capitalismo”, razão de ser do socialismo de Marx, ou é esquecida ou lançada a um plano tão abstrato e retórico, que perde qualquer vontade de verdade. Contudo, a ambiguidade e desorientação reinante não significa a extinção dos efeitos deletérios da herança deixada pelo escritor de A Ideologia Alemã. Podemos destacar, de forma breve, dois gestos negativos característicos que vibram renitentemente em nosso debate político: 1. A aceitação hesitante, sôfrega e vacilante das instituições democráticas. Aqui e ali, sobretudo quando advém a derrota eleitoral, verbaliza-se explicitamente o menosprezo por pilares da democracia moderna, tais como a liberdade de imprensa, o parlamento, a separação entre os poderes, a alternância no poder, etc. Volta-se a relativizar estes ganhos institucionais sob a equívoca expressão desqualificadora “democracia burguesa”; 2. O vício da estatolatria. O entendimento que a empresa privada, a organização econômica do particular, não passa de expressão de imoralidade, porquanto seja vinculada a uma cadeia de ideias rechaçadas ou mal deglutidas em tal tradição ideológica: o dinheiro, o lucro, a riqueza, etc. O estado é contraposto como solução antisséptica, donde a tolerância e/ou incapacidade de compreender a ineficiência do gigantismo estatal, particularmente em seus monopólios, e o componente nefasto das camadas tecnocráticas e corporativas a erigir privilégios a si próprios.

Por fim, negando a percepção atilada de Marx acerca das potencialidades da “sociedade burguesa”, exprimida de modo clássico no Manifesto Comunista, os que se dizem seus adeptos negam os avanços sociais  dos últimos séculos, diminuem a importância da capacidade produtiva capitalista, tornam-se reticentes às inovações tecnológicas. Substituem a utopia pela distopia, as promessas da racionalidade responsável moderna pelo cansaço e enfado da pós-modernidade sentimentalista.

No enredo histórico “descoberto” por Karl Marx, a modernidade capitalista – mediante a ciência e o aprimoramento técnico – jogava um papel decisivo, pois que levaria a humanidade a deixar para trás a carência, a escassez. A abundância se torna uma possibilidade. Foi um entusiasta da dinâmica “economia burguesa”, do esforço pelo conhecimento rigoroso, sistemático. Foi um progressista, rigorosamente falando. Afora as críticas pertinentes à condição dos trabalhadores do seu tempo, tal progressismo de Karl Marx foi o que ele possuía de mais valioso. Neste aspecto, parece, não tem como contestá-lo.