Não diga patriotismo em vão

August 31, 2020

Economia

Esse artigo foi originalmente publicado no Estado de S. Paulo. Leia na íntegra aqui.

Por Zeina Latif, doutora em economia pela Universidade de São Paulo (USP) e consultora econômica. Trabalhou na XP Investimentos, Royal Bank of Scotland (RBS), ING, ABN-Amro Real e HSBC.

O debate público é um dos alicerces da democracia. Contribui para a cidadania, para o desenho de políticas públicas e a tomada de decisões do Legislativo. Para cumprir bem o seu papel, é essencial que o debate público não apenas seja amplo, como também conte com a participação de especialistas embasados por estudos de qualidade e diagnósticos precisos.

O bom embate entre especialistas se dá na divergência técnica, e não ideológica, apontando custos e benefícios das medidas propostas. Não há política pública perfeita. Há conflitos entre objetivos de curto e médio/longo prazos, tal que uma política bem-sucedida hoje pode ter efeitos perversos adiante. Escolhas precisam ser feitas pela sociedade, pesando prós e contras. Essa é tarefa da política, e não de técnicos, a quem cabe fornecer insumos para a tomada de decisão.

O Brasil não está bem nesse quesito, faltando qualidade técnica ao debate econômico. Predominam no País centros de pesquisa pouco conectados com a academia internacional, esta debruçada na busca de evidências empíricas e no rigor do arcabouço teórico moderno. Os centros que seguem a linhagem acadêmica preponderante no exterior, chamados aqui (equivocadamente) de liberais – em contraposição aos chamados desenvolvimentistas – são a minoria. Enquanto lá fora as divergências entre os economistas são mais técnicas, de forma que visões heterodoxas (alternativas) hoje eventualmente se tornam ortodoxas (consolidadas) posteriormente, ao sobreviverem ao escrutínio acadêmico, aqui é como se liberais e desenvolvimentistas falassem línguas diferentes, pela falta de convergência metodológica.

Historicamente, prevalece no debate brasileiro a visão dos desenvolvimentistas, moldando boa parte da agenda política; os liberais só são chamados quando bate a crise fiscal.

Os desenvolvimentistas defendem que o crescimento econômico em países atrasados, como o Brasil, requer a liderança estatal. Focam nos instrumentos de curto prazo, como se o longo prazo se resumisse à soma de vários curtos prazos, desconsiderando problemas da dinâmica econômica. Assim, costumam negligenciar questões como disciplina fiscal, eficácia de políticas públicas e eficiência econômica. Há um quê de paternalismo também. É comum a defesa de direitos absolutos, sem a análise dos seus efeitos colaterais sobre a economia e o bem-estar social. Foi essa visão que prevaleceu na Assembleia Constituinte. 

O fato de importantes economistas que introduziram a linha de pesquisa empírica no Brasil terem ocupado cargos técnicos na ditadura militar produziu preconceitos e seu isolamento. As expressões “ortodoxo” e “neoliberal” viraram ofensa, enquanto se difundia que a “teoria econômica aqui não funciona”.

A consequência disso é que reformas só avançam quando o quadro é tão grave que a classe política é levada a agir. Foi assim na reforma da Previdência, aprovada com 20 anos de atraso e sob protestos de desenvolvimentistas.

O principal debate econômico atual no País é sobre a necessidade ou não de retomada da disciplina fiscal, cumprindo a regra do teto, findo o período de calamidade pública. A inflação e juros baixos reduzem o apelo para reformas fiscais, e o pêndulo pende para os desenvolvimentistas, cujas ideias contam com o apoio de Bolsonaro.

Os manifestos de economistas a favor e contra o teto de gastos dizem muito sobre as deficiências do debate econômico. Não é o caso de repetir os argumentos apresentados por ambos os lados, mas chama a atenção a maior qualidade analítica do primeiro manifesto, mais técnico e sem ataques a quem pensa diferente, em contraste com o tom mais beligerante do segundo, que acusa quem defende o teto de “impatriótico”. Coincidência ou não, Bolsonaro pede patriotismo ao mercado financeiro.

A melhor forma de especialistas cumprirem seu papel para o desenvolvimento do País é a qualidade da pesquisa econômica. Isso sim é espírito público.