Fábula do FGTS

July 31, 2019

Emprego

Vendido como direito, fundo posa dificuldades adicionais para os trabalhadores

Manoel não se lembra da última noite que dormiu bem. Sofre com as dívidas que só aumentam e que não sabe como vai pagar. Paga juros altos nos empréstimos que a família tomou no cheque especial e no cartão de crédito. Ironicamente, Manoel tem patrimônio. Poderia usá-lo para quitar as dívidas, mas o governo o proíbe.

Manoel empresta seu dinheiro a juros bem baixos: seu investimento já rendeu abaixo até da inflação, e está muito abaixo dos juros que paga nas suas dívidas. Mas o dinheiro está preso ali.

Já Miguel é um rico empreiteiro com boas conexões políticas. Seus empreendimentos foram lucrativos ao longo dos anos porque consegue crédito barato, abaixo dos juros de mercado. Miguel pega dinheiro emprestado com Manoel. Miguel e seus pares pressionam o governo para manter essa linha de financiamento.

Carlos é um sindicalista em uma grande estatal. Ele também pressiona para que o empréstimo de Manoel para Miguel se mantenha. A estatal cobra de Manoel altíssima taxa de administração, embolsando 1% do dinheiro que guarda e que é mal remunerado.

Manoel só vê uma saída para seu problema. Angustiado com a má remuneração do seu dinheiro, buscará a única forma que tem disponível para conseguir sacá-lo: ser demitido. Poderá assim receber de volta seu patrimônio enquanto busca uma nova vaga de emprego e faz bicos no mercado informal.

Luiz é um pequeno empresário e chefe de Manoel. Ele percebe a mudança no seu comportamento, mas não a estranha. Os atrasos reiterados e as respostas grosseiras vão levar à sua demissão: Luiz já procedeu assim com outros empregados.

Ricardo será contratado por Luiz para a vaga de Manoel. É jovem animado com a chance. Espera ser bem treinado no novo trabalho e conseguir oportunidades ainda melhores no futuro com a qualificação que receberá.

Luiz não vai treinar Ricardo. Entende que o custo de o qualificar não compensa. Esse investimento já foi perdido diversas vezes, porque – como Manoel – muitos funcionários ficam pouco tempo nas vagas.

Jaques é cliente no estabelecimento de Luiz. Frequentemente está insatisfeito. O serviço poderia ser melhor.

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O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) é uma poupança obrigatória de trabalhadores formais, como Manoel. Ela historicamente rende bem abaixo de outros investimentos, como a caderneta de poupança. A depreciação desse patrimônio é intencional.

Os recursos são usados para financiar obras públicas, que se beneficiam do dinheiro barato. E viram lucro para empreiteiros como Miguel e a estatal de Carlos: a Caixa Econômica Federal.

Os recursos de Manoeis emprestados para Migueis e administrados por Carlos perdem valor. Para evitar a dilapidação de seu patrimônio, Manoeis buscam resgatá-lo. Continuando em seu emprego, não têm essa chance. Se saírem, sim.

A alta rotatividade no mercado de trabalho brasileiro é problema bem diagnosticado há tempos (como nos estudos do professor José Márcio Camargo). Ela leva empresários como Luiz a pouco investirem nos funcionários, como Ricardo. Qualificação e treinamento demoram para dar retorno às empresas.

Essa é uma das explicações para a crônica produtividade baixa da economia brasileira, detectada pelo insatisfeito Jaques.

Vendido como um direito, o FGTS posa outras dificuldades adicionais na vida de trabalhadores como Manoel e Ricardo. Os 8% exigidos de empreendedores como Luiz significam salários menores (especialmente para trabalhadores de maior qualificação e poder de barganha, que tenderiam mais a incorporar o FGTS no salário se ele não existisse). Significam também maior chance de desemprego ou informalidade (especialmente para os de menor qualificação, gerando custo de contratação análogo a um salário mínimo maior em 8 pontos porcentuais).

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Existem muitas propostas de reforma para o FGTS, no sentido de encerrar o subsídio de Manoeis a Migueis e Carlos; melhorar a produtividade e salários de Manoeis e Ricardos; e elevar a chance de contratação destes reduzindo os encargos recolhidos por Luizes.

A proposta do Ministério da Economia na MP 889 não é uma grande reforma estrutural, mas talvez um importante avanço mais incremental. Aumenta a remuneração do patrimônio de Manoel, tornando-a próxima da caderneta de poupança e o enriquecendo.

Permite também que ele saque agora e anualmente seus recursos, mantendo a possibilidade de receber a multa de 40% em caso de demissão.

A perspectiva desses saques também permitirá acesso a crédito mais barato, via consignado.

Luiz poderá investir mais em qualificação, com os vínculos mais duradouros: sem perda de valor real dos recursos e saques anuais, a rotatividade cai. Mais produtividade é mais salário.

Os defensores dos trabalhadores defenderão manter tudo como está.