Chega de políticas baseadas no achismo!

May 18, 2020

Coronavírus

Esse artigo foi originalmente publicado no Estado de S. Paulo. Para ler na íntegra, clique aqui.

Estamos vendo nacionalmente as consequências de políticas públicas sem evidências durante a luta contra a pandemia Covid-19. Sejam a retórica do presidente da República contra o isolamento social, a falta de testes, as apostas em remédios sem eficácia comprovada, e o preterimento de especialistas de saúde em favor lobistas empresariais, o fato é que já temos mais de 10 mil mortos oficialmente relacionados ao vírus da Covid-19, e diferente de outros países, com o número de casos crescendo. Neste mês de maio de 2020, é nítido que o achismo vindo do Palácio do Planalto torna o Brasil o segundo país com mais mortes diárias relacionadas à pandemia.

Infelizmente, vemos que políticas públicas baseadas pelo achismo também ocorrem no nível local. Na última quinta-feira o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, anunciou a ampliação do rodízio de veículos na cidade, impedindo a circulação de veículos com placas de final par em dias ímpares e vice-versa, abrangendo todo o município e o dia inteiro, incluindo os finais de semana. O objetivo seria aumentar a taxa de isolamento do município, o que faria diminuir o contágio social e a disseminação do vírus.

Tanto a motivação como a relação de causa e efeito são bem questionáveis. Que dados levaram a essa política? O que seria maior, a substituição do carro pelo transporte coletivo, com maior chance de contágio, ou a diminuição da propensão da pessoa a sair de casa por conta do rodízio? Qual o custo de observância da prefeitura, especialmente sobre a isenção dos veículos? Qual o ganho de se estender o rodízio para Cidade Tiradentes, Brasilândia, Rio Pequeno, ou Engenheiro Marsilac, os quatro cantos além do centro expandido da cidade?

Essas perguntas são necessárias para implantação de políticas públicas efetivas. Entende-se, como disse o próprio prefeito, que “questões extremas exigem medidas extremas”, e que a tempestividade necessária em plena pandemia dificulte tal análise; contudo, ignorá-la por completo pode causar problemas bem maiores que a falta de ação do poder local.

A Teoria da Mudança é um exemplo de iniciativa rápida usada no planejamento de políticas públicas, donde se delimita o problema (a disseminação do vírus), a política para avaliar como e por que uma mudança desejada deveria acontecer naquele contexto, através de indicadores relacionados com o resultado efetivo. Olhando sob equilíbrio geral, não há nada que indique a eficácia do rodízio, pois é pouco provável que o indicador de mobilidade por celular, monitorado diariamente pelo poder público local, seja totalmente correlacionado com o contágio social, sem separar transporte coletivo do individual e desprezando possibilidade de aglomerações com a implantação do rodízio agora. O fato de existir um indicador relacionado à localização do celular não indica que ele é excelente para medir diagnóstico, especialmente em uma megalópole complexa como São Paulo.

O que se observa, após o primeiro dia de adoção deste tipo de rodízio, é exatamente a diminuição do trânsito associada a maior aglomeração tanto em transportes coletivos como na caminhada a pé pelos cidadãos. Ou seja, a despeito da boa intenção do prefeito, é bem possível que se tenha o efeito contrário e alavanque os casos de Covid-19, especialmente na periferia, por conta do aumento do uso de trens, metrô e ônibus.

Os nudges (‘cutucões’ aos indivíduos via pequenos incentivos) cujos estudos deram o Nobel de Economia de 2018 ao Richard Thaler funcionam se forem bem pensados, se tiverem evidência teórica ou empírica por trás da iniciativa. Caso contrário, torna-se apenas achismo.

Deve-se dissociar esta ideia da política de rodízio de veículos implantada pelo então governador Mário Covas (avô do prefeito), e seu secretário de Meio Ambiente Fabio Feldmann nos anos 1990, e continuada pela prefeitura. Ali, havia uma nítida falha de mercado, que eram as externalidades causadas pela poluição e pelo tráfego de veículos, um diagnóstico, e uma política associada ao problema, que existe até hoje. Aqui, não há evidência alguma de que a restrição aos veículos possa propagar isolamento social de toda a população paulistana.

Ou seja, não se trata de desmerecer a ação governamental durante a pandemia. O trade-off entre vidas salvas e economia não existe. É a pandemia que leva à crise econômica e não o isolamento social. O ponto é que essa ação seja efetiva para aliviar a demanda por leitos de saúde. Outros países fizeram lockdown nas regiões mais afetadas exatamente pela evidência sugerida por especialistas. Infelizmente o Brasil está reinventando a roda, nacional e localmente, com grandes chances de dar errado. A política pública boa é aquela que corrige a falha de mercado; não parece ser o caso aqui.

A questão se agrava pelo fato de as políticas baseadas pelo achismo serem recorrentes na gestão Covas no município de São Paulo, cujo secretariado atualmente é mais conhecido pela sua amizade com o prefeito que pela experiência na área em que comandam. Da mesma Secretaria de Transportes surgiu a famigerada apreensão de patinetes ano passado e o bloqueio em determinas ruas na semana passada, felizmente revogada. Torçamos para que esta e outras medidas baseadas pelo achismo, locais e nacionais, tenham o mesmo fim.