As lições de Eleanor

June 14, 2023

Liberdade de Expressão

Artigo publicado originalmente em VEJA. Leia na íntegra aqui.

Era um dia quente em Brasília e o ministro Flávio Dino passava um sermão nos funcionários de algumas redes sociais. “Não estou interessado nos termos de uso de vocês”, dizia. “Nem eu, nem a Polícia Federal, que eu comando”. Achei curioso. Um ministro comanda a PF? Logo depois, veio a ameaça: “Não queremos que vocês virem investigados da Polícia Federal, nem réus”. Não entendi quem seria aquele “nós”, subentendido na frase, nem com base em que lei Dino imaginava enquadrar as empresas. Mas achei tudo um belo retrato da atual confusão brasileira. No final, o ministro, talvez em um dia difícil, concluiu: “Esse tempo da liberdade de expressão como um valor absoluto, que é uma fraude, acabou no Brasil”.

Foi aí que me dei conta de como as palavras, por vezes, podem atravessar o samba. Em que momento mágico, no Brasil, a liberdade de expressão foi um “valor absoluto”? E como saltamos com facilidade da simplificação de atribuir a “epidemia de violência nas escolas” à internet, para regular, sabe-se lá como, as redes sociais? Vamos lá: a liberdade de expressão sempre será regulada nas democracias. A pergunta real é se desejamos viver sob uma regulação feita de critérios restritos e bem delimitados, ou fundada em critérios móveis, abertos a toda sorte de interpretações por parte de um ministro, de um comitê ou de qualquer um em posição de poder. Ninguém discorda de que é preciso vigiar e punir duramente crimes como o terrorismo, a pedofilia ou o racismo, na internet e fora dela, e ninguém reclamou quando isso foi feito no Brasil.

Os defensores de uma tutela ampla do Estado sobre a opinião imaginam as redes e o próprio debate na sociedade como um imenso gramado, bem cuidado, do qual é perfeitamente lógico extrair as ervas daninhas. O que precisamos é de um jardineiro sábio, arrancando “inverdades”, discursos de ódio, palavras e imagens inadequadas, que podem configurar crime ou, como diz o PL das Fake News, podem levar a um crime futuro. É inútil, nesse debate, perguntar quem faria as vezes do tal jardineiro, e se ele não falhará na hora de decidir se esta ou aquela informação é uma erva daninha. Intuo que por trás daquele “nós” majestático de Dino estava a figura do nosso bom jardineiro. Muita gente na história cumpriu essa tarefa. À época em que John Milton escreveu sua Areopagítica, na Inglaterra do século XVII, era uma comissão do Parlamento; na ditadura chinesa é o Estado comandado pelo Partido Comunista; no Brasil já tivemos o DIP, com Vargas, e muito recentemente nossos tribunais ensaiaram esse papel.

“Viver numa sociedade aberta demanda algum sentido de renúncia”

Quando penso nessas coisas me lembro do doutor Li Wenliang. Ele foi censurado pelo governo chinês quando fez os primeiros alertas, ainda no fim de 2019, sobre o surgimento de um novo vírus, letal, que logo depois levaria a sua própria morte. Era a Covid-19, e uma informação rápida poderia ter ajudado a evitar sua rápida propagação. Mas o jardineiro errou. Algum ministro chinês, que de fato mandava na polícia, achou que aquela informação era uma erva daninha. Nos Estados Unidos, o Twitter e o Facebook deram uma de jardineiro mágico e acharam melhor “esconder” os e-mails comprometedores do laptop de Hunter Biden, a poucos meses das eleições. Seria fake news, propaganda russa. Só que não. Era verdade. Teve efeitos no resultado eleitoral? Ninguém sabe. Nas eleições brasileiras, nosso jardineiro achou que era “desinformação” e resolveu proibir associações de Lula com ditadores latino-ame­ricanos. Na semana passada vimos a recepção de Lula a Maduro e a pergunta se inverteu: não terá sido nossa Justiça Eleitoral que produziu uma desinformação? Mais recentemente, nosso jardineiro resolveu proibir empresas de dar opinião sobre o PL das Fake News, e confesso achar constrangedor. Ao menos numa democracia, cuja lógica é pôr as garantias do direito no lugar do jardineiro.

A tradição americana resolveu isso de outro modo. E o fez em um episódio extremo. Foi em 1969, quando a Suprema Corte julgou se a Constituição protegia ou não o direito de Clarence Brandenburg, líder da Ku Klux Klan, de fazer seu desprezível discurso falando em “vingança” caso o país continuasse a “suprimir a raça branca”. Sob qualquer parâmetro, aquilo era uma brutal erva daninha. Alguém toparia fazer uma defesa de seu “direito à expressão”? Uma jovem advogada negra e de esquerda, Eleanor Norton, achou que sim. “Eu adorava esses casos”, disse ela, muitos anos depois, “porque sabia que a esquerda e os ativistas de direitos civis eram os principais usuários da liberdade de expressão”. E completou: “Sabia que estávamos ganhando casos e mais casos porque o fazíamos para ambos os lados”. A Suprema Corte deu ganho de causa a Brandenburg em nome de um princípio. Um princípio que, caso respeitado, protegeria a todos os cidadãos, presumivelmente melhores do que Brandenburg. Sua forma era uma espécie de teste: um discurso só poderia ser banido quando feito de modo a “incitar uma ação ilegal iminente”. E mais: quando existir uma chance “provável” de que a ação venha a acontecer. São as chamadas “fighting words”, que tentam expressar com objetividade uma fronteira de proteção à liberdade de expressão. Não a clareza absoluta sobre isso, porque ela é impossível, mas o limite possível dessa clareza. No caso brasileiro, fomos para o lado inverso: a ausência de critério. Em vez de “fightings words”, temos as “dancing words”. É o estado de direito dançante regulando as prerrogativas individuais. Que pode banir um partido político, por um tuíte curtido por 150 pessoas, ou editar a gosto um debate eleitoral inteiro.

Depois do caso Brandenburg, Eleanor se tornou uma das maiores ativistas negras americanas, e suas pautas sempre foram a violência contra mulheres e direitos LGBT. A pauta herdada dos direitos civis, que ela aprendeu com Luther King, no coração da grande tradição liberal americana. “Em uma sociedade democrática”, pergunta ela, em depoimento que valeria muito ser visto no Brasil, “vamos deixar o Estado dizer quem está autorizado a falar? Ou vamos deixar isto com o livre fluxo da palavra?”. “Eu prefiro o livre fluxo”, e conclui, pensativa: “nem que para isso, por vezes, eu tenha que defender pessoas que jamais me defenderiam”.

Há um enorme encanto nessas lições, sobre as quais fui pensando enquanto me dirigia a um debate sobre liberdade de expressão, na Academia Brasileira de Letras. Elas dizem que viver em uma sociedade aberta é nossa melhor opção, mas demanda algum sentido de renúncia. A coisas banais, como mandar bloquear jornalistas, banir parlamentares, obrigar empresas a expressar a opinião do Estado. Ou mesmo fazer, caso você possa, de sua opinião a opinião do Estado. E, no limite, editar o debate público. É tentador fazer isso, porque o poder é tentador. Mas é incompatível com a democracia, que um dia imaginamos construir.