A efetividade das medidas do CADE para o mercado de combustível no Brasil

June 7, 2018

Economia

Rent-seeking

Subsídios

No dia 29 de maio, o (Conselho Administrativo de Defesa Econômico) CADE apresentou para a sociedade um conjunto de propostas importantes para elevar o grau de competição no setor de combustíveis no Brasil. Esta iniciativa tem o grande mérito de cumprir uma das funções basilares do órgão, a de promotor da concorrência (Advocacy), buscando identificar fricções de toda ordem à competição, inclusive regulatórias, e sugerir medidas corretivas.

É fundamental destacar que o conjunto de propostas não foi delineado como uma resposta à pressão dos caminhoneiros. Na realidade, foi fruto de um amadurecimento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, com a contribuição de estudos técnicos da então Seae (Secretaria de Acompanhamento Econômico), hoje Seprac (Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência), além de gerações de profissionais que passaram pelo CADE. E, possivelmente por esta razão, revelam um conjunto bem estruturado de alterações que, se implementadas, terão, em sua maioria, um impacto positivo para o mercado com reflexo sobre o consumidor.

Não obstante, é importante ter clareza de qual o real alcance das sugestões que o CADE apresenta. O quadro abaixo ilustra bem a situação atual. O primeiro aspecto que se destaca é que os impostos representam a maior parcela da composição do preço da gasolina (43%), que é bem superior àquela aplicada ao diesel (27%). Isto mostra que os caminhoneiros já eram menos onerados do que o resto da população, apesar de utilizarem um combustível mais poluente. Aliás, a boa prática econômica sugere que devam ser aplicadas alíquotas mais elevadas sobre combustíveis fósseis, como forma de racionalizar o seu consumo e corrigir ou minimizar os efeitos negativos sobre o meio ambiente (as chamadas externalidades negativas).

O segundo aspecto a apontar é que a parte que cabe à distribuição e revenda, que é o principal foco das medidas propostas pelo CADE, representa apenas 11% dos preços finais. Assim, tais medidas não devem ser entendidas como algo que pacifique as discussões hoje presente, como a questão posta sobre a necessidade da Petrobrás atrelar ou não seus preços praticados ao preço internacional do barril do petróleo e às flutuações cambiais. Ao contrário, há que se dar transparência sobre os efeitos passíveis de serem obtidos, sob pena de desacreditar o órgão de defesa da concorrência.

Ainda nesta linha, uma leitura atenta do documento apresentado pelo CADE também indica que a maioria das nove medidas não terá efeito no curto prazo, o que não quer dizer que elas não devam ser devidamente discutidas e implementadas.

Mais precisamente, sob o ponto de vista da concorrência, essas medidas podem ser divididas em quatro grupos: (i) as de caráter eminentemente estrutural; (ii) as que visam reduzir custo no setor; (iii) as que tentam mitigar práticas que favoreçam a formação de cartel (práticas facilitadoras); e (iv) a que eleva o grau de informação do consumidor final.[1]

O primeiro grupo envolve: (i) a permissão para verticalização do setor de varejo de combustíveis e (ii) a revisão de normas sobre o uso concorrencial do espaço urbano. Enquanto a primeira tem por objetivo reduzir custos de transação e acabar com a dupla margem de lucro hoje existente na relação distribuidor-varejista, a segunda visa reduzir barreiras legais e regulatórias à entrada no mercado varejista de combustíveis. As duas propostas têm, sob o ponto de vista de lógica econômica e da experiência internacional, bons fundamentos, mas não são de efeito imediato. Isto porque a primeira implica convencer a própria Agência Nacional do Petróleo (ANP) de sua importância, para que revogue uma portaria de 2.000. Já a segunda pode envolver, inclusive, fortes discussões legais no âmbito municipal, onde o lobby dos revendedores de combustíveis tende a ser mais presente.

No segundo grupo de sugestões do CADE enquadram-se: (i) a permissão para que produtores de álcool vendam diretamente aos postos; (ii) a possibilidade de importação de combustíveis pelas distribuidoras; e (iii) a liberação para existência de postos autosserviços. A venda direta de álcool pelo produtor também implica revisar resoluções da ANP para corrigir ineficiências econômicas associadas à existência de uma margem de lucro adicional do distribuidor e à logística mais onerosa que se formou a partir da obrigação hoje existente. Isto porque um produtor de álcool, nas circunstâncias atuais, muitas vezes tem que entregar seu produto para ser levado às distribuidoras mais afastadas, que só então retornam o combustível aos postos mais próximos de onde foi fabricado. Note-se que tal medida tem como efeito positivo criar uma concorrência entre produtor de etanol e distribuidores de combustível em geral.

De maneira similar, a possibilidade de importação de combustíveis pelas distribuidoras implicará a redução dos custos de transação e das margens de remuneração do intermediário (importador), além de estimular a concorrência no segmento de distribuição. Não obstante a medida ser também salutar e desejável, sua efetividade dependerá, sob o ponto de vista prático, do comportamento estratégico da Petrobrás, seja no que tange à sua política de preços, seja por eventuais criações de barreiras estratégias à importação de eventuais concorrentes.

Tomemos por exemplo a discussão atual. Se o preço do barril de petróleo no mercado internacional se elevar, e a Petrobrás resolver atender ao “mercado político”, não repassando o aumento ao longo da cadeia, eventuais interessados na importação não terão margem para negociar o produto e acabarão saindo do mercado (ou nem entrando). Aliás, este é só um dos bons exemplo dos efeitos colaterais derivados de intervenções políticas e irracionais sobre o modelo de fixação de preços da empresa. Nesse contexto, vale ressaltar que a maior parte da infraestrutura de importação e transporte no país pertence à Petrobrás, o que lhe confere a possibilidade de, na ausência de uma atuação efetiva da ANP e do CADE, adotar condutas discriminatórias contra potenciais concorrentes que queiram realizar a importação direta. É fundamental, portanto, que esta medida seja também acompanhada de um processo de discussão sobre restruturação do setor, para no mínimo reduzir o poder de mercado da Petrobrás.

A implementação do autosserviço completa o conjunto de medidas que visam reduzir custos no setor, permitindo ao consumidor escolher entre abastecer pessoalmente ou fazer uso do serviços de frentistas, a exemplo do que já existe na maioria dos países. Entretanto, sua implementação não é algo trivial, uma vez que envolve a possibilidade de demissões em um momento de elevado desemprego no país. Adotá-la de maneira gradativa, com um programa de requalificação e recolocação desses empregados, seria uma alternativa a ser implementada no setor.

O terceiro grupo de medidas visa coibir as ações coordenadas entre concorrentes (como, por exemplo, a carteis), sendo que as sugestões envolvem: (i) constituir um sistema de informações mais eficiente sobre a comercialização de combustíveis; (ii) revisar o modelo de substituição tributária do ICMS; e (iii) repensar a forma de tributação do combustível. É fato que mais informações permitiriam ao órgão investigar melhor e ser mais efetivo na condenação de eventuais cartéis. Mas a proposta de revisar o artigo 198 do Código Tributário Nacional envolve sigilo fiscal e possivelmente contará com uma forte resistência da Receita Federal. De toda forma, uma alternativa parcial para a obtenção dos objetivos perseguidos pelo CADE seria que o órgão, em conjunto com a ANP, constituísse um banco de dados conjunto, que atendesse às necessidades mútuas. Devemos lembrar que ambos têm como prerrogativa solicitar informações ao setor privado, que devem ser obrigatoriamente fornecidas.

A proposta de repensar o modelo tributário de cobrança na origem tem como objetivo fundamental evitar a elaboração de tabelas de estimativas de preços pelos estados, como ocorre hoje. Isto porque essas tabelas criam o que se conhece na literatura econômica de “preço focal”, ou seja, servem como parâmetro para que os postos uniformizem seus preços. Ademais, a alteração deste modelo, em conjunto com a proposta de mudar a forma de cobrança do tributo de específico (por unidade vendida) para ad valorem (sobre o percentual do preço praticado) também teria por efeito estimular a concorrência e reduzir preços. Isto porque, com os modelos atuais, quem cobra um preço menor paga proporcionalmente mais imposto do que seus concorrentes. Novamente, neste caso as alterações propostas têm um forte potencial de elevar a competição, mas é pouquíssimo provável que sejam implementadas no curto prazo, principalmente porque envolve distribuição de recursos entre estados da Federação e possível perda de receitas tributárias, em um momento em que as contas públicas estão deterioradas.

Finalmente, o último grupo implica apenas fornecer mais informações para que o consumidor identifique quais postos efetivamente competem entre si (em outras palavras, para se saiba quais os reais proprietários de cada posto e quais outros postos possuem, inclusive de outras bandeiras), envolve uma análise típica de custo-benefício. Por certo, dar transparência sobre o real padrão de concorrência vigente em cada região pode ajudar para que o consumidor não seja enganado no seu processo de escolha.

Por outro lado, há que se ponderar qual seria o custo privado e, principalmente, o público da implementação desta proposta. Perguntas como quem fiscalizará e qual a eventual forma de punição devem fazer parte desta equação. Some-se a isso o fato de que não há nenhuma garantia a priori de que esta medida se refletirá em menores preços. Por ser uma questão teórica, esta medida careceria de um estudo mais aprofundado para avaliar sua eficácia e forma de implementação.

Da discussão aqui empreendida, o que se conclui é que o conjunto de sugestões que o CADE apresenta é positivo, apesar de não surtirem efeitos no curto prazo e nem na proporção que se alardeou na imprensa. Ademais, se o objetivo é ampliar o grau de concorrência no setor, seria fundamental que houvesse uma discussão franca e transparente na sociedade brasileira sobre os custos e benefícios de se manter uma empresa estatal como a Petrobrás, com forte poder de mercado e sem espaço à competição. Uma alternativa, e que parece ser a mais racional, seria retomar a discussão da década de 90, quando se aventou inclusive a hipótese de uma privatização com uma reestruturação abrangente do setor. Esta decisão envolveria vender a empresa em partes, estimulando a concorrência nas diferentes etapas da cadeia e desverticalizando segmentos mais propícios a problemas anticompetitivos. Nesta mesma linha, também seria salutar rediscutir os prós e contras do modelo de partilha hoje vigente, assim como a modelagem de leilões que tomou corpo ao longo das duas últimas décadas. Do contrário, os esforços de melhoria do setor permanecerão concentrados sobre a menor parcela do preço do combustível que pagamos.

[1] O CADE preferiu segmentar naquelas de caráter regulatória, tributária e geral. A mudança neste texto teve por objetivo mostrar qual seria o resultado esperado.