A cloroquina da insensatez

May 18, 2020

Relações exteriores

Ernesto Araujo, ministro das Relações Exteriores, ao invés de fazer diplomacia, aproveitou seu tempo ocioso para estapear Slavoj Zizek, num texto entitulado ‘Chegou o Comunavírus’.

Zizek é um controverso pensador esloveno, mestre em inverter o senso comum, ao ponto de simultaneamente abraçar a esquerda e atacar o politicamente correto.

Em meio a pandemia, Zizek, no recém publicado livreto ‘Vírus’, diz que a ocasião é oportuna para o ressurgimento de idílicos sentimentos coletivistas. Afinal, como se percebe, estamos todos na mesma tempestade, mas em barcos diferentes.

Invocar a práxis comunista é fazer operações de resgate, acolher os mais desafortunados, é ultrapassar as fronteiras nacionais, é a união de todos contra um inimigo comum (ao invés do salve-se-quem-puder anarco-capitalista).

Mas, como toda fé exige seu dízimo, esse preço é pago com a exacerbação dos aparatos de controle social, ao modo neo-orweliano chinês. Sobre esse último ponto, como bem observa Araújo, Zizek revela-se ambiguamente omisso.

De fato, não se pode perder do horizonte que a pandemia vai, mas o Estado mutante ficará. Por outro lado, é incessibilidade volver-se, nesse instante, contra sentimentos que inspiram a solidariedade.

Araújo, em seu blog, Metapolítica Brasil, deita seu fígado contra Zizek. O ataque, com pitadas de histerismo, mostra o embaixador, um homem reprimido pelo pragmatismo que a diplomacia exige, tendo que despejar em Zizek a hostilidade que gostaria de manifestar contra a China.

O desespero tem suas causas. A pandemia é um dos poucos exemplos, assim como a causa ecológica, onde as soluções puramente liberais (no sentido clássico) parecem insuficientes: Quem pode ver-se contra uma OMS, ou SUS forte? Quem pode ver-se contra um mínimo de medidas restritivas coordenadas por um agente público centralizado de vigilância sanitária? Quem pode ver-se contra medidas econômicas contra-cíclicas e a suspensão momentânea da rigidez fiscal? Além do mais, tudo o que não queremos ver no momento são expressões do egoísmo.

Se nosso momento econômico, antes, permitia a reconstrução, agora voltamos a terra arrasada, e a arrogância terá seu preço.

O presidente eleito, que teve a oportunidade de unir o país, preferiu expandir a fissura de onde brotou sua candidatura, e fazer dessa caverna um poderoso bunker, a fim de acomodar sua crescente família.

Ao invés de encarnar a solução, agora acuado, a cada dia que passa, dobra sua aposta na divisão, assim como fez o PT.

O covid-19, por contraste, acabou revelando esse outro mal, a genese problemática de um governo, agora reduzido a puro ressentimento, em estado de choque e negação profunda, limitado a enxergar apenas seu próprio drama e cego para as mortes que avançam.

Contudo, o efeito placebo da patológica fé messiânica não atuará sem limites. O vírus do comunismo não pode ser combatido com a cloroquina da sociopatia. Como bem deve saber Zizek, os movimentos dialéticos exigem a internalização dos opostos, enquanto a foraclusão é mecanismo das psicoses.

A negação e a demência não são caminhos possíveis. Assim, tampouco, a liberdade restringida hoje não pode perpetuar-se, fazendo deste estado de emergência um eterno estado de exceção.

O custo de parar essa pandemia não pode ser a servidão eterna num Estado policialesco. Nossas únicas opções não podem estar entre a rendição aos mecanismos de controle social, desejáveis dos sistemas autoritários, e a sociopatia.