Racismo, colorismo e radicalismo

June 5, 2018

Cultura

Racismo

“O racismo se agiganta quando transferimos a guerra para dentro do nosso terreiro. Renuncio hoje ao papel de Dona Ivone Lara no musical ‘Dona Ivone Lara – um sorriso negro’ após ouvir muitos gritos de alerta – não os ladridos raivosos. Aprendo diariamente no exercício da arte – e mais recentemente no da academia, sempre com os meus mestres – que escuta é lugar de reconhecimento da existência do Outro, é o espelho de nós.

[…] Renuncio porque quero que este episódio sirva para nos unir em torno de uma mesa, cara a cara, para pensarmos juntos espaços de representatividade para todos nós. Renuncio porque quero que outras mulheres e homens de pele clara, feito eu, também tenham o direito de serem respeitados como negros”.

(Declaração de Fabiana Cozza)

A atriz Fabiana Cozza abriu mão de interpretar a 1ª dama do samba, Dona Ivone Lara, após receber críticas de parte da comunidade negra por “não ser negra o suficiente”.

Esse fato abriu espaço para um debate importantíssimo do chamado colorismo no Brasil. O termo foi criado por Alice Walker, em 1983, no livro “In Search of Mothes’ Garden: Womanist Prose”, no qual ela define como o “tratamento prejudicial ou preferencial de pessoas da mesma raça, baseado tão somente na cor da sua pele”. A ideia é de que quanto mais clara for a pele da pessoa, melhor ela será tratada na sociedade.

Para entender melhor o problema e observar sua importância, destaco uma pesquisa da Universidade de Stanford, nos EUA, apontando que afro-americanos de pele mais escura recebem 2x mais sentenças de penas de morte do que os de pele mais clara. Outro caso interessante é o apresentado no livro “The Hidden Brain: How Our Unconscious Minds Elect Presidents, Control Markets, Wage Wars and Save Our Lives”, onde Shankar Vendantam expõe estudos apontando como o colorismo determina quem é contratado ou até mesmo eleito.

Aqui no Brasil há uma pesquisa sobre como o colorismo atua entre irmãos gêmeos de tons de pele diferentes, com efeitos nefastos na educação para o irmão de pele mais escura, em virtude de como enfrenta as instituições na perspectiva do racismo.

Alice Walker mostrou, portanto, a necessidade de o fenômeno ser erradicado do mundo. Contudo, infelizmente, no Brasil ganhou um desvio que gerou um efeito completamente contrário ao pretendido inicialmente, afinal uma mulher negra perdeu a oportunidade de exercer sua profissão e “virou estatística”.

E na perspectiva dos dados, é preciso ter grande cuidado com a coerência. Em primeiro lugar, o IBGE estabelece que pretos e pardos são negros e, por esse motivo, somos considerados maioria da população. Seria Fabiana negra suficiente para figurar nos 54% da população?

Depurando mais a observação, na perspectiva da desigualdade, no “Dossiê Mulheres Negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil”, o IPEA observou que as mulheres negras têm uma taxa de desocupação 130% maior que a dos homens brancos, enquanto mulheres brancas têm uma taxa 70% maior, observando o mesmo parâmetro. Onde Fabiana está inserida?

Na história brasileira houve comprovadamente um processo de branqueamento de nossa população perpetrado pelo Estado incentivando a vinda de imigrantes europeus, ao mesmo tempo em que implantava uma política separatista dos ex-escravos, no começo da república. Nos dias atuais, o panorama segue inalterado, guardadas as devidas proporções e uma prova recente é o caso da Globeleza Nayara Justino, demitida depois de eleita por ser muito negra. Portanto, sempre foi e continua sendo “quanto mais branco melhor”.

Todavia, o fenômeno vindo de fora da comunidade negra, no decorrer do tempo, mostrou-se internalizado da pior maneira e essa classificação de subgrupos é prejudicial de várias formas.

Um primeiro exemplo é como as defesas radicais podem afetar a liberdade das pessoas. No caso, a própria família de Dona Ivone Lara indicou Fabiana para o papel. Que movimento é esse que tem a prepotência de ignorar a vontade da família da homenageada? Existe alguma organização ou grupo de pessoas acima de todos para aferir quem pode ou como homenagear alguém?

Um segundo se insere nas consequências de políticas públicas, alargando o raciocínio do argumento, como as políticas de cotas. O STF estabeleceu que o critério da autodeclaração é legítimo, assim como os instrumentos de controle da heteroidentificação, como as comissões administrativas. Considerando o período compreendido entre 2003 e 2014, observou-se um aumento de 178% de estudantes negros nas universidades públicas, segundo a ANDIFES. Sem dúvida é um grande avanço, mas que precisa, ainda hoje, conviver com as perguntas sobre quem é ou não preto o suficiente para ingressar na universidade por cotas.

Por conseguinte, uma exclusão dessa espécie apenas persegue o caminho desenhado de séculos atrás, resultando numa situação em que pardos claros não são reconhecidos nem por brancos e nem por pretos. Tampouco é legítimo discriminar outros negros que não possuem a mesma opinião da maioria. Qualificar como palmiteiros, capitão-do-mato e afins em nada ajudam no debate racial.

A reflexão é válida e bem-vinda, assim como é perfeitamente compreensível a animosidade que assola o tema, na medida em que são séculos de obstáculos impedindo a população negra de também exercer e desenvolver plenamente sua liberdade e personalidade, mas é preciso ter cautela a fim de que não cometamos injustiças contra quem também já as sofre diariamente. Além disso, é necessário ter em mente sempre evitar de correr o risco de enfraquecer o debate em situações mais sensíveis e de maior impacto social.

Por isso é importantíssimo reforçar que a ideia da diferenciação pelo tom de pele surgiu para denunciar falsas inserções, e nunca para excluir aquela pessoa que também tem a ascendência africana e lida com as mesmas dificuldades que nós. Um provérbio africano ensina que o separatismo não é o caminho ideal dizendo que “se quiser ir rápido, vá sozinho, mas  se quiser ir longe, vá junto”.

Devemos seguir na contramão do ódio e da raiva e acolher todos que ajudam no combate à discriminação. E sempre escolher o amor ao invés do rancor.