Irreparável é a ausência

July 1, 2020

Artigo em colaboração com Gabriel Felippi, Servidor Público Municipal e associado do Livres em Jaraguá do Sul/SC.

“Preocupação é que traga dano irreparável para algumas pessoas”. Foi esta frase, proferida pelo Diretor do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (Hemosc), Guilherme Genovez, que os catarinenses tiveram que ouvir em meados de junho.

A proibição da doação de sangue por homens homossexuais foi uma prática homofóbica presente em nosso país há anos. Até este ano, de acordo com a Portaria de Consolidação nº 5/2017 do Ministério da Saúde, um homem que teve relações sexuais com outro homem nos últimos 12 meses estaria proibido de doar sangue. Ou seja, mesmo que em uma relação monogâmica e com o devido uso de proteção, um homem homossexual ou bissexual não poderia doar sangue – uma restrição que se sustenta numa perspectiva completamente preconceituosa e homofóbica.

Entretanto, no dia 9 de maio deste ano, o Superior Tribunal Federal (STF) derrubou essa proibição e, no último dia 12, o Ministério da Saúde enviou uma circular em que indica a retirada, na entrevista feita com doadores homens, da pergunta a respeito de prática sexual com outro homem nos últimos 12 meses – o que era um fator de inaptidão – sem qualquer distinção sobre o tipo de prática sexual, tampouco sobre ser um relacionamento monogâmico ou não. Enquanto associados do Livres, temos muito orgulho de dizer que nosso movimento teve protagonismo nessa luta, com liderança do deputado estadual Guilherme da Cunha, de Minas Gerais.

Ainda em abril, a Bancada da Liberdade, reunindo mandatários dos três níveis da federação e de diversos estados do Brasil, solicitou ao Ministério da Saúde a retirada dessa restrição. No ofício, o grupo aponta que vários países já abandonaram esses critérios ultrapassados e se restringiram apenas à análise de comportamentos de risco: na América Latina, temos Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México e Peru; na Europa, a Albânia, Bulgária, Espanha, Itália, Polônia, Rússia e San Marino completam a lista.

A decisão veio em um momento muito importante. Por conta da pandemia da COVID-19, estamos vendo, em pelo menos 15 estados e no Distrito Federal, uma forte redução dos estoques dos bancos de sangue. Em Santa Catarina, o mesmo cenário ocorre: o próprio Hemosc aponta, em seu site oficial, que 5 dos 8 tipos sanguíneos estão com estoque reduzido no estado. Enquanto isso, segundo o IBGE, há mais de 10 milhões de homens brasileiros autodeclarados homossexuais e bissexuais. As estimativas apontam que o potencial de doação desse público é de até 18 milhões de litros por ano.

Genovez afirma que o problema da liberação se deve à “janela imunológica” do vírus HIV, ou seja, o período entre a infecção com o vírus e a produção dos primeiros anticorpos, que seria necessária para identificar sua presença no sangue do doador. O que vemos, infelizmente, é a clássica instrumentalização da histeria sobre o HIV contra os homens homossexuais e bissexuais, visto que, nos dias de hoje, não há sentido em discriminar toda essa população por conta do medo de contaminação.

Hoje em dia, já existem testes no mercado capazes de identificar a presença de HIV com apenas 8 dias após o contágio, inclusive no Brasil. Além disso, como afirmado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em sua nota enviada ao STF, o que torna, estatisticamente falando, um grupo mais vulnerável ao risco de contaminação de ISTs não é sua sexualidade, mas sim práticas sexuais que não são exclusivas de um único grupo. A própria Circular do Ministério da Saúde corrobora com isso, ao não retirar as demais medidas de análise do doador. Assim, não se trata de qualquer salvo conduto para homens homossexuais e bissexuais doarem sangue, já que todos os outros critérios de análise – critérios esses baseados em comportamentos, e não sobre grupos – continuam a valer.

Portanto, a frase de Genovez não está errada. Há sim um risco de dano irreparável para as pessoas. Mas esse risco é para os milhões de brasileiros, incluindo muitos catarinenses, que precisam de doações de sangue e que podem ficar sem, caso tais atitudes homofóbicas e preconceituosas como as que ele proferiu continuem presentes.

Assim sendo, com todo o exposto acima, demandamos ao Diretor Geral do Hemosc, Sr. Guilherme Genovez, bem como ao seu superior, o Secretário de Estado da Saúde de Santa Catarina, Sr. André Motta Ribeiro, que manifestem publicamente a garantia total de cumprimento da decisão do STF, conforme a Circular nº 39/2020/CGSH/DAET/SAES/MS, que retiram a restrição que proíbe a doação de sangue por homens que fizeram sexo com outros homens nos últimos 12 (doze) meses, além de que não será tolerada, nos centros de doação de sangue, qualquer discriminação de caráter sexual entre os potenciais doadores.

Recebemos de bom grado qualquer manifestação que busque ampliar o debate sobre questões sanitárias envolvendo os critérios de doação de sangue, entretanto, visto sua posição institucional, o citado diretor do Hemosc deve ter plena consciência de que suas manifestações podem gerar repercussões extremamente negativas e inviabilizar a doação de sangue de inúmeros doadores aptos à doação. O cuidado nas palavras é essencial.