Qual é o meu local no “local de fala”?

August 19, 2020

Por Jobson Camargo, membro da setorial LGBTI+ do Livres, co-fundador do Coletivo Xica Manicongo e liderança do Voluntários Arco Iris RJ.

Existem falas que me dão uma aversão, geram um desconforto e muitas das vezes “esquentam” o sangue.

Dentre elas está o tal “local de fala”. Para mim, o local de fala remete ao conhecimento e vivência. Conhecimento através da pesquisa, estudos e vivência do dia a dia da pessoa.

Muitas pessoas tendem a distorcer esse local. Distorcem ao seu bel prazer e de forma, por muitas vezes, desonesta. Tratam essa questão como uma arma de silenciamento transformando assim esse local como um local de exclusão aonde se faz necessário ganhar o embate. O intuito, neste caso, é usar a carteirada do local de fala para eliminar a opinião divergente e, sem perceber ou até mesmo de forma proposital, o oprimido pega o chicote do opressor.

Bom, eu sou adepto do debate. Acredito que numa discussão não há vencedores e sim aprendizado. Se a gente se propõe ao diálogo é porque, além de se fazer entendido, também queremos compreender o ponto de vista do outro. Não somos os donos da razão e nem sempre estamos certos. O diálogo, quando feito de forma consciente e responsável, nos leva a reflexão. Já mudei de opinião, já fortaleci as minhas convicções e já aprendi muito através dele.

Aprendi, e sigo assim a vida, que não existe local de fala sem o local de escuta. Como diria o Ney Matogrosso em uma de suas belas canções “Eu não sei dizer nada por dizer, então eu escuto”. O que adianta deter a verdade se não há espaço para ponderações e aprendizado com o diferente? No que, para onde podemos crescer se achamos que nos encontramos num patamar superior as demais pessoas?

O local de fala deve ter um papel primordial de conscientização do indivíduo para que ele seja protagonista do seu próprio destino. Ele é agregador, instrui as pessoas e as livra da ignorância. Faz com que elas entendam sua condição, seu espaço, seu local na sociedade e a partir disso busque o conhecimento necessário para entender e participar de suas lutas.

Um dos exemplos de que o local de fala não deve ser banalizado é o atual presidente da Fundação Palmares, órgão do governo federal ligado a secretaria de Cultura, que tem como objetivo fomentar políticas públicas para a comunidade negra. Usando a sua ótica de local de fala, o presidente dessa instituição é negro. Mas só é necessário ser negro para ocupar esse espaço? Ele tem a cor por fora, mas por dentro é “desbotado”.

Hoje a instituição vive o seu maior retrocesso desde a sua criação com um presidente que persegue seus semelhantes e busca agradar uma política desumana e contrária as pautas que deveria defender. Lembra muito o que fazia seus ancestrais e talvez isso seja mesmo o objetivo – capitão do mato. Ele, por diversas vezes, tenta jogar a carteirada de que é negro e isso deve bastar para referendar suas ações pois é o seu local de fala.

Um outro exemplo de local de fala banalizado é do ex-deputado federal Jean Wyllys. Passou 8 anos na Câmara dos Deputados se utilizando do local de fala LGBT, pois era o único deputado federal assumidamente gay nas duas legislaturas, e jamais aprovou um projeto sequer (mesmo não sendo em relação a nossa pauta). Não vou negar aqui que o nobre deputado tenha sofrido homofobia por causa de sua orientação sexual. Isso é inegável. Mas o que não podemos aceitar é o uso banalizado do local de fala para camuflar nossas incompetências políticas como a falta de articulação para aprovar um PL no que nos propomos no período eleitoral. Como posso eu criticar o Bolsonaro por ter passado 28 anos na Câmara dos Deputados e só aprovou dois PL se o deputado que “detinha” meu local de fala no parlamento não aprovou nenhum?

Com esses dois exemplos eu deixo claro (ou escurecido) e reforço a importância do que de fato é o local de fala.

Ele não vem, necessariamente, dos livros e também não vem, necessariamente, das violências que sofremos no dia a dia. Podendo ser, ou não, a junção de tudo isso. O que importa é o indivíduo entender seu local e ter a consciência e ciência do que está defendendo, falando.

O que deve ser pontuado é a necessidade de a sociedade dar voz aos invisíveis. Por diversas vezes e durante anos as pessoas brancas assumiam o protagonismo nas lutas das pessoas negras. Vou colocar aqui que era com boa intenção em ajudar, mas nem sempre era e de boa intenção o inferno está cheio. Assim como também muitos gays se sentem confortáveis em falar sobre a pauta trans.

Por que falar por alguém que tem a vivência aliada a leitura sobre determinados assuntos? Se tem uma pessoa negra, uma pessoa trans por que uma pessoa branca, um gay vai falar por elas? É essa reeducação que se faz necessária para se compreender a premissa do local de fala. Ele é uma importante arma de combate as opressões e preconceitos, mas jamais deve ser usado como silenciamento.

As redes sociais, e principalmente em tempo de pandemia, evidenciaram uma militância raivosa e pouco progressista no que se refere ao aprendizado e diálogo. Hoje, em diversas postagens podemos ver a tal da “lacração” e isso muito me preocupa. As vezes até me preocupa o modo de condução de algumas pessoas nos comentários.

Não há nenhum interesse em instruir, mostrar o outro ponto e sim já sair na voadora virtual para garantir seus “likes” sem se importar com o prejuízo de não trazer aquela pessoa do outro lado para reforçar suas trincheiras. A carteirada do local de fala é cansativa e repugnante quando se é colocada nesse contexto.

Muitas das vezes parece que acabaram-se os argumentos para refutar uma ideia e daí, para sair por cima, se joga um “mas eu sou negro e você não pode falar isso”, “mas eu sou LGBT e você não pode falar isso”, “mas eu sou A e você não pode falar B”. Qualquer pessoa tem o direito e a liberdade responsável de expor sua opinião desde que saiba do que está falando. Todos nós somos passíveis ao erro, mas seremos evoluídos quando entendermos a necessidade de não voltar a errar.

Que possamos evoluir enquanto pessoa. Que passemos a aprender mais em qual contexto social estamos para usarmos com sabedoria o local de fala na qual pertencemos.