Proibição e drogas, por Milton Friedman

March 24, 2021

Em 1920, nos Estados Unidos, foi aprovada a 18ª Emenda Constitucional, que punha em vigência a chamada Lei Seca, que proibia a fabricação, transporte, armazenamento e venda de bebidas alcoólicas, sendo fruto de um concluo cristão progressista em torno do Partido Democrata. Sim, isso não apenas é possível como foi bastante comum entre o fim do sec. XIX e o início do séc. XX, pois para se ter uma ideia, William Jennings Bryan (1860-1925) se firmou como referência democrata progressista por sua luta por direitos trabalhistas, reforma agrária, sufrágio feminino, direitos dos negros e contra o imperialismo americano, e ao mesmo tempo ficou marcado como cristão fervoroso na defesa da proibição do ensino de teorias contrárias ao criacionismo nas escolas do estado do Tenessee, no que ficou conhecido como o Julgamento de Scopes ou o Julgamento do Macaco, de 1925. No caso da Lei Seca, da qual Bryan foi um dos destacados defensores religiosos, esta foi a tentativa de planejar e por em prática via poder estatal um mundo ideal, harmônico, e pacífico, sem o pecado da beberronice. Foi um fracasso em tudo o que se propôs, chegando a permitir a ascensão de figuras como Al Capone (1899-1947), e foi abolida em 1933, o que por sua vez resolveu os problemas que ela criou e permitiu um melhor tratamento dos problemas que ela propunha resolver.

Em 1972, nos mesmos Estados Unidos, foi deflagrada a “guerra às drogas”, nas palavras do então presidente Richard Nixon (1913-1994), aplicando às drogas o mesmo tratamento antes aplicado às bebidas alcoólicas, sendo fruto dessa vez de um concluo cristão conservador em torno do Partido Republicano, como seria mais comum de se esperar, ainda mais se se observar que o conservadorismo republicano na década de 1970 e seguintes foi a resposta política cristã para a contra cultura dos anos 1960. O resultado dessa guerra, no entanto, como podemos observar ainda hoje, não é muito diferente do que foi o da Lei Seca: violência, não raro com contornos racistas, em torno do tráfico, corrupção de autoridades, e perdas, muitas vezes de vida, de cidadãos pacíficos. E tal como ocorreu com a Lei Seca, atualmente a guerra às drogas está sendo reconhecida como um fracasso e se está começando a se por um fim nela nos Estados Unidos, o que vem resolvendo os problemas que ela criou e permitindo um melhor tratamento dos problemas que ela propõe a resolver.

Muito dos equívocos nas premissas da guerra às drogas, e das tristes, porém acertadas previsões sobre seus resultados, foram expostos pelo economista e ícone liberal Milton Friedman (1912-2006), que apesar de conselheiro de Nixon e outros republicanos em assuntos econômicos, não deixava de ser crítico de políticas republicanas que julgava equivocadas. Diversas foram as oportunidades em que, através de artigos e entrevistas, Friedman tocou no assunto, sempre em tom crítico, passando dos ensinamentos que a Lei Seca tem a dar sobre o assunto às previsões e confirmações sobre os resultados nocivos da guerra às drogas. A primeira dessas oportunidades ocorreu ainda no ano de 1972, na conceituada revista Newsweek, na qual Friedman, numa atitude corajosa para a época, se contrapõe firme e publicamente ao senso comum republicano sobre o assunto, num momento em que o partido se firmava como a grande força conservadora cristã dos Estados Unidos, tendo na guerra às drogas uma de suas principais plataformas. O texto publicado por Friedman na ocasião, com sensato respeito à experiência passada com a Lei Seca e profético ceticismo em relação ao que infelizmente ainda viria, e que tem muito a ensinar a brasileiros, se encontra traduzido a seguir.

Proibição e Drogas – Milton Friedman

“O reinado de lágrimas acabou. Em breve, as favelas serão apenas uma memória. Vamos transformar nossas prisões em fábricas e nossas cadeias em depósitos e corncribs¹. Os homens vão andar eretos agora, as mulheres vão sorrir, e as crianças vão rir. O inferno estará para sempre desocupado*”. É assim que Billy Sunday², o famoso evangelista e principal cruzado contra o Demon Rum³, felicitou o início da Lei Seca no início de 1920. Sabemos agora como eram tragicamente condenadas as suas esperanças. Novas prisões e cadeias tiveram que ser construídas para abrigar os criminosos gerados pela conversão do beber destilados em um crime contra o estado. A proibição minou o respeito pela lei, corrompeu os asseclas da lei, criou um clima moral decadente – mas não impediu o consumo de álcool.

Apesar desta lição trágica com o caso, parecemos inclinados a repetir exatamente o mesmo erro no trato com as drogas.

Por motivos éticos, temos o direito de usar a máquina do governo para prevenir um indivíduo de se tornar um alcoólatra ou um viciado em drogas? Para crianças, quase todo mundo iria responder pelo menos um sim qualificado. Mas para adultos responsáveis, eu, por exemplo, responderia não. Bom senso com o viciado em potencial, sim. Dizer a ele as consequências, sim. Orar por ele e com ele, sim. Mas eu acredito que não temos o direito de usar a força, direta ou indiretamente, para impedir que outro homem cometa suicídio, quanto mais que beba álcool ou use drogas.

Admito prontamente que a questão ética é difícil e que os homens de boa vontade podem discordar. Felizmente, não precisamos resolver a questão ética para chegar a um acordo sobre a política. A proibição é uma tentativa de cura que torna as coisas piores – tanto para o adicto quanto para o resto de nós. Portanto, mesmo se se considerar apresentar a política em relação às drogas como eticamente justificada, considerações de conveniência tornam essa política mais imprudente.

Considere primeiro o viciado. Legalizar as drogas pode aumentar o número de dependentes, mas não é claro que sim. O fruto proibido é atraente, principalmente para os jovens. Mais importante, muitos viciados em drogas são deliberadamente tornados assim por traficantes, que dão aos prováveis prospectos suas primeiras doses livres. Vale a pena ao traficante fazer isso porque, uma vez fisgado, o viciado é um cliente cativo. Se drogas estivessem legalmente disponíveis, qualquer possível lucro de tal atividade desumana desapareceria, uma vez que o viciado poderia comprar da fonte mais barata.

Aconteça o que acontecer com o número de adictos, o adicto individual estaria claramente em melhor situação se as drogas fossem legais. Hoje, as drogas são incrivelmente caras e altamente incertas em qualidade. Os viciados são levados a se associar a criminosos para obter drogas, tornando–se eles próprios criminosos para financiar o hábito e correr o risco constante de morte e doença.

Considere a seguir o resto de nós. Aqui a situação é cristalina. O dano para nós do vício de outros decorre quase inteiramente do fato de que as drogas são ilegais. Um recente comitê da American Bar Association estimou que os viciados cometem de um terço a metade de todos os crimes de rua nos EUA. Legalize as drogas e o crime nas ruas diminuirá drasticamente.

Além disso, viciados e traficantes não são os únicos corrompidos. Imensas somas estão em jogo. É inevitável que alguns policiais com salários relativamente baixos e outros funcionários do governo alguns altos – pagos também – sucumbirão à tentação de ganhar dinheiro fácil.

A legalização das drogas reduziria simultaneamente a quantidade de crimes e aumentaria a qualidade da aplicação da lei. Vocês podem conceber qualquer outra medida que realizaria tanto a promoção da lei e ordem?

Mas, vocês podem dizer, devemos aceitar a derrota? Por que não simplesmente acabar com o tráfico de drogas? É onde experiência sob a Lei Seca é muito relevante. Não podemos acabar com o tráfico de drogas. Podemos ser capazes de interromper [a vinda do] o ópio da Turquia – mas existem inúmeros outros lugares onde a papoula do ópio cresce. Com a cooperação francesa, podemos fazer de Marselha um lugar insalubre para fabricar heroína – mas existem inúmeros outros lugares onde a simples fabricação e as operações envolvidas podem ser realizadas. Contanto que grandes somas de dinheiro estejam envolvidas – e elas estão fadadas a estarem se as drogas são ilegais – é literalmente impossível esperar o fim do tráfico ou mesmo reduzir seriamente seu escopo.

Sobre drogas, como sobre outras áreas, a persuasão e o exemplo são provavelmente muito mais eficazes do que o uso da força para moldar outras pessoas à nossa imagem.

Fonte: https://miltonfriedman.hoover.org/friedman_images/Collections/2016c21/NW_05_01_1972.pdf

Tradução, introdução e notas por Felipe Prestes Batista.

Notas

 No original, for rent, em tradução literal: para alugar. No contexto se subentende que se estaria se referindo a uma situação em que algo estaria desocupado.

1. Celeiro usado para armazenagem e secagem de milho.

2. Billy Sunday (1862-1935), durante o séc. XIX foi um dos grandes jogares de beisebol dos Estados Unidos, tendo a partir do início do séc. XX se tornado um dos mais famosos e influentes oradores cristãos dos Estados Unidos, tendo sido um dos mais importantes oradores religiosos em favor da Lei Seca.

3. Em tradução literal, demônio do rum. Uma maneira religiosamente pejorativa de se referir às bebidas alcoólicas.