Por que a Faria Lima deveria ver oportunidades em São Mateus?

September 3, 2020

Por André Bolini, formado em Administração de Empresas pela FGV e aluno de Direito pela USP. É líder Livres na cidade de São Paulo.

Flávia é moradora da comunidade Vila Bela, no distrito de São Mateus, no extremo da Zona Leste da cidade de São Paulo. Quase todos seus vizinhos, amigos e familiares compartilham de um mesmo drama: ninguém tem CEP. E isso é um sintoma de algo bem mais grave que a ineficiência dos Correios. O fato é que a maioria dos imóveis na comunidade estão em situação irregular, isto é, terrenos e casas existem fisicamente, mas não nos mapas e registros oficiais da cidade. São ativos que estão lá, mas que não cumprem seus melhores propósitos para os mais pobres: comporem um pequeno patrimônio pessoal, poderem ser comprados, vendidos e alugados, e servirem de garantia para crédito.

Vila Bela retrata muito bem um desafio (e também uma oportunidade) da cidade inteira, inclusive de inúmeros edifícios nas regiões centrais: formalizar as propriedades irregulares. Só na capital paulista estima-se haver 2 milhões de imóveis sem matrícula regularizada. Isso representa quase 40% de tudo que está edificado na cidade, e afeta quase 30% dos paulistanos (aproximadamente 4 milhões de pessoas). Além disso, a situação de propriedades irregulares retrata algo mais profundo: o entrave que os países da América Latina precisam superar para, de fato, embarcarem no capitalismo.

Hernando de Soto, economista peruano influenciado por Milton Friedman e Friedrich Hayek, entende que a maioria dos países do Sul global nunca se desenvolveram, apesar de muitas vezes adotarem práticas capitalistas, por indisponibilidade de capital. O Brasil ilustra bem essa tese: mais de 50% dos ativos imobiliários brasileiros não existem formalmente. Ou seja, mais da metade do capital existente e imobilizado não é reconhecido juridicamente. Tome o Vila Bela como exemplo: um lote não construído de 50m² está avaliado em aproximadamente R$ 40 mil. Lotes construídos e de metragem similar podem chegar aos R$ 100 mil. Imóveis assim são transacionados sem formalização todo dia. Trata-se de capital morto e invisível aos olhos da lei.

A consequência dessa informalidade já é um ciclo vicioso conhecido, cuja gravidade para o desenvolvimento pleno e sustentável não é reconhecida: sem regularização fundiária, o imóvel não tem CEP. Se não tem endereço formal conectando o proprietário ao ativo, a companhia de água e esgoto não pode atender plenamente a área. Se não tem endereço, a Prefeitura não pode empenhar verba para urbanizar a região, com iluminação pública, calçamento, asfalto e drenagem. Se não tem formalização, a herança deixada de pai para filho (que geralmente é tão somente aquele imóvel) não tem segurança jurídica alguma. Os elementos mais básicos da cidadania não alcançam esses milhões de cidadãos pela falta daquele simples comprovante de residência: abrir uma conta no banco, tomar um empréstimo, conseguir taxas de juros menores.

Adotar a regularização fundiária como compromisso urgente e permanente entre o Estado, a Sociedade e o Mercado pode proporcionar um choque de capitalismo, esperado e desejado sobretudo pelos mais pobres, que consideram, em sua maioria, pagar pela regularização do imóvel em que já vive do que entrar na fila de um programa estatal de habitação. Estamos diante de uma oportunidade para que, finalmente, o capitalismo seja para todos.