Os programas de renda mínima

September 17, 2020

Por Daniel Plech Garcia, analista de Políticas Sociais do Departamento de Benefícios da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania do Ministério da Cidadania (Deben/Senarc/MC), com atuação na gestão do Programa Bolsa Família (PBF) desde 2017. Mestre em Governança e Desenvolvimento pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), especialista em Direito Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e bacharel em Administração pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Propostas de programas de renda mínima têm sido debatidas com intensidade crescente nos últimos anos, e em especial nos últimos meses, no contexto da pandemia de Covid-19. No Brasil, além do Programa Bolsa Família (PBF), avaliado positivamente em todo o mundo há mais de quinze anos, esse tema ganhou importância adicional com o advento do Auxílio Emergencial, aprovado às pressas pelo Congresso Nacional com vistas a minimizar os impactos socioeconômicos negativos gerados pelo distanciamento social que presenciamos, em maior ou menor grau, desde março.

Nessa esteira, e ciente do enorme potencial eleitoral por trás de políticas de transferência de renda, o governo Bolsonaro planeja aperfeiçoar, ampliar e simplificar o PBF, cogitando-se inclusive na alteração do seu nome para Renda Brasil, como estratégia de marketing político.

Fato é que, dentre as dezenas de propostas de expansão e aperfeiçoamento do Bolsa Família já circuladas, encontra-se um leque variado de desenhos, desde os universais aos focalizados, passando por cestas de benefícios mais simples (por família ou individuo, fixo ou variável) até as mais complexas, destinadas a diferentes públicos (criança, adolescente, jovem, gestante, deficiente, idoso, família monoparental, residência unifamiliar), e o valor dos benefícios e das linhas de pobreza  e extrema pobreza.

Dentre as propostas de renda mínima focalizada, destaca-se o Programa de Responsabilidade Social[1], formulado pelos pesquisadores Vinícius Botelho, Fernando Veloso, Marcos Mendes, Anaely Machado e Ana Paula Berçot.  A sua grande inovação é o mecanismo de desincentivo à subdeclaração de renda, por meio da Poupança Seguro-Família (PSF), ampliando, assim, a focalização do programa, por conseguir canalizar a maior parte dos recursos a quem efetivamente mais precisa.

Ademais, o desenho proposto do Benefício de Renda Mínima (BRM), que fundiria em apenas um os atuais benefícios que compõem o Bolsa Família (Básico, Variáveis e Superação da Extrema Pobreza), também se destaca positivamente pela sua simplicidade, reduzindo custos operacionais e facilitando a sua compreensão pela população, e equidade, pois completaria a renda da família até o patamar de R$ 125,00 per capita (cerca de 12% do salário mínimo vigente).

Entendemos que políticas de renda mínima com um benefício variável voltado para o fechamento do hiato da pobreza (ou extrema pobreza) tendem a ser mais eficientes, simples e justas do que aquelas compostas por um benefício de valor fixo e/ou outros benefícios específicos para determinados públicos (como o desenho atual do PBF). Um dos debates mais legítimos, contudo, consiste na definição do valor da linha de pobreza, que costuma servir de parâmetro para a definição do valor do benefício, seja ele fixo ou variável. Admite-se que os valores adotados atualmente pelo Bolsa Família (R$ 178,00 e R$ 89,00) estão altamente defasados.

Talvez o critério tecnicamente mais correto e de maior respaldo acadêmico seja aquele definido pelo Banco Mundial e adotado pelo IBGE, em que são considerados extremamente pobres (ou miseráveis) aqueles que vivem com até US$ 1,90 PPC[2]por dia (o equivalente a R$ 145,00 por mês em dezembro de 2019) e pobres aqueles com PPC menor que US$ 5,50 por dia (R$ 420,00 por mês em dezembro passado). Na última virada de ano, eram cerca de 13,5 e 52,5 milhões de brasileiros, respectivamente, nessa situação (6,5% e 25% da população nacional).

Constata-se, assim, que o Bolsa Família (ou Renda Brasil) deve incrementar os seus recursos, hoje na ordem de 29,5 bilhões de reais anuais (com previsão de ampliação para quase 35 bi em 2021), a fim de garantir uma renda mínima a todo cidadão que ao menos o faça superar a extrema pobreza monetária. Trata-se de um direito social-liberal legítimo, amparado nas noções contemporâneas de mínimo existencial, segurança alimentar e nutricional, conquista civilizatória e liberdade de escolha.

Nesse sentido, atribuir uma renda mínima per capita entre 1/5 e ¼ do salário mínimo (hoje entre 200 e 260 reais aproximadamente), passível de variação de acordo com o custo de vida de cada microrregião, além de conferir segurança alimentar mínima, permitiria o seu reajuste anual automático, acompanhando o do salário mínimo, e evitaria perdas inflacionárias sobre a parcela mais vulnerável da população. Ressalta-se que o valor a ser transferido seria variável para cada indivíduo, pois consideraria também, para efeito de cálculo, a renda declarada no Cadastro Único e a renda observada nos registros administrativos (CNIS, Rais, Siape, Mei, IRPF, etc.).

Não obstante, desafio ainda maior do que decidir a proposta ideal de renda mínima consiste na definição de como alocar maior volume dos escassos e disputados recursos públicos em prol da população mais pobre. Há alternativas técnica e socialmente razoáveis, porém com enorme dificuldade de aprovação política, uma vez que envolveria perdas diretas por parte de setores altamente organizados, ou por resistência natural de, como nas palavras do próprio presidente da República, “tirar do pobre para dar ao paupérrimo”, ignorando, assim, o baixo grau de eficiência no combate à pobreza de muitas dessas ações de transferência de renda, por mais bem intencionadas que sejam.

Constata-se que um rearranjo orçamentário capaz de viabilizar uma política de renda mínima ambiciosa a ponto de elevá-la ao status de direito social (sem fila de espera) e de efetivamente superar a extrema pobreza monetária será viabilizado somente quando o povo brasileiro abraçar a ideia, e compreender que eventuais perdas diretas, imediatas e setoriais traduzir-se-ão em ganhos diretos e imediatos, aos mais pobres, e indiretos, permanentes e universais, a toda a população.

Para que se logre êxito nesse processo gradual de convencimento, a academia, os gestores públicos e nossos representantes eleitos hão de propor um pacto social-liberal que redirecione recursos públicos mal gastos com isenções, subsídios, deduções, penduricalhos, supersalários, reajustes salariais e transferências sociais de baixa eficiência (abono salarial, salário família, seguro defeso, auxílio-reclusão, BPC), em prol dos mais pobres, por meio da ampliação e aperfeiçoamento do Bolsa Família (ou Renda Brasil). No fim das contas, o nome do programa é o que menos importa.

[1]A descrição completa do Programa de Responsabilidade Social foi publicada na edição da Folha de São Paulo do dia 13 de setembro, disponível no link: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/09/redesenho-de-programas-reduziria-pobreza-em-ate-24-sem-gasto-novo-estimam-pesquisadores.shtml.

[2]Paridade do poder de compra.