Militares e liberais: aliança fadada ao fracasso

July 23, 2021

A aproximação entre liberais e setores das Forças Armadas do Brasil, sem dúvida alguma, é uma coalização que antecede – e muito! – a formação do bloco bolsonarista que ganhou a eleição presidencial brasileira de 2018. Muito antes de Paulo Guedes e companhia se associarem aos militares, outros liberais do país experimentaram a mesma fórmula. Aqui, me refiro diretamente ao golpe civil-militar que derrubou João Goulart da presidência da República entre o fim de março e o começo de abril do ano de 1964. Nas duas ocasiões, a motivação dos liberais foi a mesma: aliaram-se aos demais grupos para barrar o avanço de um inimigo comum. No caso mais antigo, o trabalhismo de Vargas, representado na época por seu herdeiro, Jango, fez o papel de antagonista. Já na segunda circunstância, o Partido dos Trabalhadores assumiu este papel. Como veremos, não coincidentemente, nas duas situações tivemos o mesmo desfecho. Os liberais foram suprimidos pelos seus outrora aliados: os militares. Com base nisso, o objetivo deste pequeno texto é evidenciar justamente que, olhando para nossa história, coalizões com membros das Forças Armadas nunca foram vantajosas para o movimento liberal brasileiro.

A associação entre os dois grupos protagonistas deste artigo, como bem demonstrado no clássico História do Liberalismo Brasileiro, do saudoso Antônio Paim, tem como seu ponto inicial o término da Era Vargas (1930-1945). Os militares derrubaram um tipo de governo que ajudaram a sustentar por longos 15 anos e, assim, o pluripartidarismo voltou a existir em terras brasileiras. Getúlio Vargas organizou os setores sociais que o apoiavam em dois partidos distintos. O primeiro se chamava Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que, como o próprio nome sugere, era a casa do Trabalhismo. Ele abrigava, principalmente, trabalhadores fiéis à CLT, sindicalizados e, portanto, cooptados pela ideologia do Estado Novo. Era um partido de bases populares. Já o segundo partido se materializou no Partido Social Democrático (PSD) que, por sua vez, abrigou as elites agrárias que serviram de apoio ao primeiro governo Vargas. Um bom exemplo deste sistema foi a oligarquia catarinense da família Ramos, que reinou solitária em Santa Catarina por praticamente uma década e meia.

Bom, descritas as forças partidárias que carregavam elementos do varguismo, vamos ao que realmente nos interessa aqui. A força de oposição se organizou, pelo menos inicialmente, em um só grande partido, a União Democrática Nacional (UDN), ou seja, o alicerce da formação do partido foi a aversão comum a Getúlio Vargas e seu regime. Isso fez com que a formatação original do partido fosse extremamente heterogênea, inclusive com setores mais à esquerda que o próprio trabalhismo dentro da agremiação. Porém, passados os primeiros momentos, a UDN enfrentou um processo homogeneizador, consolidando-se como a principal força à direita no período republicano, que teve início em 1946 e terminou em 1964. Portanto, foi dentro do partido opositor ao varguismo que se abrigaram os militantes liberais brasileiros da época. Ao mesmo tempo, o partido também cooptou alguns setores militares aversos ao ditador gaúcho, como por exemplo, os que rondavam Juarez Távora e Eduardo Gomes. Foi neste momento em que se formou a primeira aliança descrita neste texto: militares e liberais estavam juntos, unidos em um plano comum com o objetivo de frear as ambições trabalhistas.

Os embates eleitorais entre a UDN e os dois partidos herdeiros de Vargas aconteceram durante todo o período da República de 1946, havendo sucessivas vitórias dos últimos perante a primeira. É bem verdade que Jânio Quadros ganhou a eleição de 1960 com apoio udenista, mas algumas atitudes pontuais durante seu breve governo o afastaram de tal partido. O importante a se ressaltar aqui é que, durante todo o intervalo entre 1946 e 1964, existiam dois grandes grupos políticos que pelejavam entre si com o intuito de emplacar seus respectivos projetos políticos e econômicos para o Brasil. Tais embates, muitas vezes, extrapolavam os limites democráticos, visto que carecia ainda ao nosso país a experiência de uma democracia sólida, pois nossas instituições estavam impregnadas de resquícios oligárquicos que impediam seu pleno funcionamento. Logo, o golpe de 1964 foi derivado deste caótico cenário político. As disputas entre os dois grupos tomaram proporções grandes demais para caberem nos parâmetros democráticos da época, até que o conflito atingiu seu clímax, em 31 de março de 1964. Em uma ampla coalizão – que envolvia também militares e liberais –, Jango foi derrubado. A “revolução” tinha como um de seus objetivos extirpar o trabalhismo de toda e qualquer instância do Estado brasileiro, bem como anular todas as tentativa de manutenção do movimento.

Os liberais embarcaram nessa cruzada motivados pelo horizonte livre de qualquer herança de Getúlio Vargas em solo brasileiro. Para eles, o Brasil vivia uma oportunidade única, com a ascensão da figura, vista como moderada, de Castelo Branco à presidência da República. Existia, na visão da época, uma chance real de serem realizas reformas liberais no país. O projeto parecia estar se concretizando quando Roberto Campos e Otávio Bulhões – dois dos maiores nomes do liberalismo nacional do período – foram convidados a ocupar os cargos de Ministro do Planejamento e Ministro da Fazenda, respectivamente. Apesar de existirem algumas dificuldades internas, encabeçadas sempre por militares, Campos e Bulhões ditaram os rumos da economia durante o governo Castelo Branco (1964-1967). Porém, dissidências e divergências políticas vindas da própria caserna transformaram totalmente o cenário político: o castelismo tornou-se impopular tanto na sociedade em geral quanto nos quartéis, assim, o então presidente e seu projeto foram substituídos pelo Marechal Arthur da Costa e Silva, que, por sua vez, carregava em si um projeto bem mais autoritário para o Brasil, e o campo econômico não fugia desta lógica. Os liberais foram chutados pelo novo governo. Depois disso, foi institucionalizada a volta ao desenvolvimentismo, tendo o Estado como o motor da economia nacional. O combate à inflação e o cuidado com os gastos públicos foram abandonados. Voltou-se à época em que se jorrava capital estatal na mão de grandes empresários brasileiros. Ou seja, o liberalismo brasileiro sonhou com o projeto castelista, mas acordou com um desenvolvimentismo de caráter ditatorial capitaneado por Delfim Neto e pelos generais no poder. Assim, o Brasil viu seus gastos públicos aumentarem de forma exponencial. Além disso, a corrupção avançou, várias estatais foram criadas e a economia do país foi estatizada de uma forma sem precedente.

Após o fim da ditadura, o movimento liberal brasileiro fez uma autocrítica da situação. O próprio Antônio Paim, no livro já aqui citado, discorre sobre o ocorrido. Fato é que os liberais compraram o discurso golpista na perspectiva de realizarem mudanças estruturais no Brasil, mas, na realidade, apenas ajudaram a ascender uma ditadura que, obviamente, não tinha compromisso algum com a liberdade.

Décadas depois desta primeira aliança, que, como percebemos, terminou muito mal para o liberalismo brasileiro, ocorreu uma segunda aproximação. A mais uma vez caótica conjuntura política no Brasil fez com que segmentos das Forças Armadas e liberais se aglutinassem em um projeto comum. Desta vez, o inimigo era o petismo, ideologia de um partido que governou a nação por cerca de 14 anos ininterruptos e deixou um legado que inclui a corrupção em massa e a maior recessão da história do Brasil nação. A possibilidade de barrar politicamente o PT partiu da motivação dos liberais em aderirem à candidatura de Jair Bolsonaro, porém, não podemos esquecer que o então candidato se comprometeu a adotar uma agenda liberal – pelo menos na economia -, e o principal fiador deste projeto foi o agora ministro da economia Paulo Guedes. Novamente os liberais brasileiros abraçaram os militares que, no passado, já os tinham iludido. E, outra vez, sem dúvida alguma, os liberais caíram no conto do vigário. Não houve aprendizado com a experiência da década de 1960. A máscara do governo atual caiu há tempos e medidas de cunho liberal têm sido rechaçadas uma atrás da outra. As privatizações estão estáticas e as reformas tributária e administrativa são alvos de duras críticas – aliás, ao que parece, não satisfazem as demandas de um projeto legitimamente liberal. Além disso, todos nós sabemos que a liberdade econômica possui um vínculo indissociável com a liberdade política e vice-versa. Neste caso, é fácil saber que Bolsonaro não tem apreço algum por este projeto.

O que mais nos intriga aqui é saber como parte do liberais brasileiros acreditou na palavra de um homem que jamais teve compromisso algum com  movimento. Muito pelo contrário, a atuação de Bolsonaro em praticamente três décadas no Congresso Nacional nos entrega a postura de um parlamentar que votou contra qualquer projeto de liberalização brasileira, incluindo o Plano Real. Somando a isso, ele sempre deixou claro seu apreço à ditadura. Quer dizer, liberais apoiaram um representante do mesmo grupo que, décadas atrás, desprezou o liberalismo. Outra semelhança se faz no fato que, grupos militares buscaram a associação somente até alcançarem o poder, depois disso, cedo ou tarde, colocaram em práticas suas próprias agendas.

E o que podemos extrair do resultado destas duas alianças? É simples, e a historiografia brasileira nos mostra o caminho: uma coalizão entre liberais e militares brasileiros é inviável, pois os grupos não possuem aproximações suficientes para servirem de alicerce ao pacto. Renomados historiadores brasileiros, como, por exemplo, José Murilo de Carvalho e Celso Castro, se dedicaram a estudar meticulosamente a formação do Exército Brasileiro e sua militância política: um trajeto que começou em 1889, passou por 1930 e conheceu seu auge em 1964. Ao analisarmos a trajetória das intervenções do exército na vida política brasileira, chegamos claramente à conclusão de que ele lutava sempre por um projeto autoritário, coletivista, protecionista e extremamente nacionalista. Foi assim que a instituição patrocinou duas ditaduras no século XX, sendo elas o Estado Novo e o Regime de 1964. O bolsonarismo, entre outras coisas, é herdeiro de toda essa lógica. Aliás, a origem da carreira política do então presidente está diretamente ligada à militância da “linha dura” dos anos 1980, contudo, isso pode ser o foco de outro texto, pois o crucial, aqui, é evidenciar a incompatibilidade de um projeto conjunto entre liberais e militares. Tanto é que, nas duas ocasiões demonstradas, a aliança ocorreu não pela luta por algo em comum, mas sim contra algo, contra um inimigo comum.

Enfim, a intenção deste artigo é demonstrar que militares e liberais são incompatíveis em território brasileiro. Temos a teoria e a prática comprovando essa questão. A saída para um Brasil mais livre reside em movimentos que encaram o liberalismo como deve ser: por inteiro, não em entrelaçados em utopias autoritárias. Por essa razão que devemos nos aglutinar em movimentos que encaram o liberalismo como ele realmente é, papel que o Livres faz de forma modelo. Esperamos também que a parcela liberal que acreditou no governo atual tome consciência do erro, realize uma autocrítica e se junte aos demais liberais, no intuito de desenvolver um país liberal de verdade.