“Essa conta não é nossa”: a cultura que impede a construção de um país melhor.

July 5, 2018

Uma frase que marcou as manifestações e a paralisação dos caminhoneiros foi a que afirma que os brasileiros se recusam a pagar a conta do custo dos combustíveis. Há nela a lógica implícita e legítima de que os políticos mantêm privilégios e gastos incompatíveis com a situação do Brasil. De outro lado, ela revela uma cultura que pode ser nociva. Este texto é um convite e uma provocação para a reflexão sobre o tema.

Os resultados da paralisação

Apesar de ainda existir resistência em parte dos caminhoneiros, a situação está normalizando-se. Na prática, a classe conquistou para si alguns benefícios que se resumem em subsídios e isenções. No entanto, até o momento, os prejuízos desses dias de paralisação são maiores do que os ganhos. Além disso, o custo dos benefícios conquistados será pago por todos nós por meio de impostos com o remanejamento do orçamento — não com cortes nas áreas que a maioria da população implicitamente reivindica.

Importante ainda é pontuar que o problema dos caminhoneiros é, ao menos em parte, resultado de excesso de oferta do serviço causado por estimulo estatal artificial — a frota aumentou drasticamente em razão do subsidio em financiamentos. Isso significa que estamos usando o vírus como remédio e, ao que consta, a economia não possui alguma espécie de sistema imunológico que possa ser ativado pela causa do problema.

A boa intenção

Mas não sejamos duros com nós mesmos. Em resposta à argumentação acima, a maioria dos defensores das manifestações provavelmente dirá algo similar a: “não é pelos vinte centavos”. Pois bem, não sabemos ainda sobre como será a continuidade dos fatos. Da mesma forma que ocorreu com o movimento contra o aumento de passagens em 2013, há a tendência de que a indignação cresça e a cobrança aumente. Veremos! Mas as consequências políticas ainda são imprevisíveis e o ponto não é esse.

Ao justificar o ocorrido com a ideia de que os políticos não responderão de outra forma e que existe uma pauta subjetiva em jogo, não estamos assumindo a afirmativa de que os fins justificam os meios?

A tirania da maioria

“A Democracia na América”, de Alexis de Tocqueville, é um livro obrigatório para quem se interessa por filosofia política. O europeu foi enviado para os Estados Unidos em 1831 e lá passou cerca de um ano estudando o sistema estadunidense para produzir sua obra. Uma das suas conclusões é a de que, quando mal estruturada, a democracia pode produzir tirania da maioria sobre a minoria. É uma redução simplista do conceito, mas que serve ao propósito deste texto.

O fato é que a imensa maioria das pessoas aprovou e apoiou a paralisação, impedindo uma minoria contrária de ir, vir e trabalhar. A produção foi interrompida em vários setores e o direito ao lavoro foi negado aos brasileiros que, seja por convicção, seja por necessidade, eram contrários ao movimento.

A extensão do problema

No entanto, o problema não está limitado as nossas liberdades individuais. Se considerarmos a ideia de que não é justo que paguemos a conta da incompetência do governo, precisamos nos perguntar: quem deve pagar? Afinal, os recursos estatais não são gerados por meio de impostos incidentes no que produzimos de riqueza?

Penso que só iremos construir um país de verdade quando nos engajarmos “na obra”. Temos uma conta pendente que foi criada como resultado de políticas equivocadas que geraram desequilíbrio fiscal e uma divida interna de trilhões. Sem esforço e comprometimento não há saída possível.

A questão é que, paralelamente, o grande debate sugerido para as próximas eleições versa sobre o nível de intervenção do Estado na economia, mas ele não está garantido. É mais fácil que ela se configure como o desastre do último pleito presidencial, com “marketeiragem”, demagogia e a lógica do “fazer o diabo para ganhar” — mesmo que isso comprometa a governabilidade.

Mas a questão central é sobre se essa cultura que diz que essa conta não é nossa não é uma porta aberta para populistas com estoque de soluções fáceis — como a que o governo ofereceu para os caminhoneiros. Parece-me que falta uma liderança capaz de demonstrar clara e objetivamente a real situação do Brasil e mobilizar as pessoas para resolvê-la. De um lado, assumindo e cumprindo o compromisso de diminuir privilégios e verbas faraônicas, de outro, demonstrando que ninguém vai pagar essa conta por nós.

É preciso abandonar a ideia messiânica de um salvador da pátria surgindo como nossa redenção. No entanto, a mobilização dá pista de que não estamos dispostos ao sacrifício de evitar a falência do país ou, no lugar de empurrar a conta para “debaixo do tapete” do orçamento, estaríamos assumindo o débito, cobrando responsabilidade nos gastos e dizendo: essa conta também é sua!

É verdade que, até o momento, o líder que precisamos não se apresentou, mas e se ele surgir? Estamos prontos? A impressão é a de que a ideia de que o Estado tem um papel assistencialista não nos ajuda. Se eu estiver certo, não há solução possível antes de mudar essa visão.

Significa dizer que, independentemente do engajamento político da população, as eleições de 2018 não apontam para uma solução de curto prazo. Podemos ter esperança de minimizar nossos problemas econômicos e de aplicar inovações incrementais, mas a mudança real e profunda só ocorrerá no longo prazo com a criação do desejo de protagonismo em relação à própria vida que parece faltar em nós. Uma evidência clara de que a liberdade não pode ser outorgada, mas deve ser conquistada. Mas quantos desejam de fato a liberdade?

*Paulo Tometich é administrador, com formação em marketing, e filósofo. É hoje também empresário e membro do Livres-RS.