Direitos autorais: um eterno conflito entre o direito de propriedade e o interesse público

August 26, 2020

Por Kátia Magalhães, advogada e tradutora. Graduada em 1997 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ em 2001. Membro da Setorial de Artes e Cultura do Livres.

I – Breve panorama histórico

Durante longos séculos, os artistas fizeram uso de seu talento e criatividade tão somente para entreter e eternizar as cortes e o clero, figurando como agradáveis adornos em palácios e monastérios, onde brindavam os convivas, geralmente em ocasiões festivas, com suas melodias, sua dança, seus versos ou suas telas. Para tanto, recebiam do nobre ou do sacerdote ao qual servissem a remuneração que estes determinassem a seu critério exclusivo, sem qualquer direito de impedir esta ou aquela forma de exibição da obra, ou de auferir proventos por futuras exibições.

Contudo, a partir do surgimento dos Estados Nacionais, da ascensão da burguesia, do contratualismo, e do maior reconhecimento dos direitos do indivíduo enquanto tal, a concepção de obras artísticas começou a ser enxergada como um possível objeto do direito de propriedade. Naquela ocasião, lá pelos últimos anos do século XVIII, surge a dicotomia entre a propriedade do autor sobre a obra e o interesse público ao acesso às criações artísticas, o que se reflete na promulgação das primeiras leis, na França, sobre a propriedade literária e artística, e no nascimento do sistema de copyright por força da primeira lei federal Norte-Americana sobre o tema, em 1790.

Desde então, as sociedades têm debatido a extensão do direito autoral, ou seja, sua limitação temporal e a natureza das prerrogativas conferidas ao autor, de modo a compatibilizar o direito de propriedade e a justa remuneração pela concepção artística com o direito de terceiros não apenas ao acesso, como também à reprodução da obra. Porém, como costuma ocorrer em discussões envolvendo a articulação entre os interesses privados e aqueles do espaço público, a questão autoral dá margem a constantes controvérsias. O tema adquire contornos ainda mais delicados em um país como o nosso, onde, de um lado, os cidadãos, em sua maioria pouco letrados, desfrutam de uma esfera restrita de liberdades e sequer concebem a existência desse objeto específico do direito de propriedade, e, do outro lado, o nosso Estado, de inclinação dirigista, não cessa de se imiscuir em limites inaceitáveis na esfera privada de cada um de nós.

II – A proteção autoral no Brasil e o sistema de arrecadação de direitos

O Brasil, signatário de vários tratados internacionais em matéria de direitos autorais, contempla a proteção autoral na nossa Constituição Federal (em seu Art. 5, XXVII), e na Lei de Direitos Autorais – LDA em vigor (Lei no. 9610/98). A exemplo de várias outras legislações, a nossa trata o direito autoral como um direito sui generis e bipartite, por incorporar direitos morais, como, por exemplo, o de reivindicar a autoria, o de manter a obra inédita e o de impedir seu uso, e, ainda, direitos patrimoniais, que são os direitos de utilizar, fruir e dispor da obra, ou seja, de auferir vantagens pecuniárias mediante o seu uso.

Dentre da velha dicotomia entre direito de propriedade e interesse público, também há, entre nós, limitações ao direito autoral (vide Artigos 46 a 48 da LDA) como, por exemplo, a livre citação, em veículos de mídia, de trechos da obra, desde que mediante a referência à fonte, e a realização de paródias que não constituam reproduções integrais, e nem impliquem em um descrédito da obra original. Outra limitação diz respeito ao escopo temporal, pois, segundo o Artigo 41 da LDA, o prazo de proteção dos direitos patrimoniais perdurará por 70 (setenta) anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao do falecimento do autor.

Uma inovação trazida no Brasil pela LDA em vigor foi a proteção aos direitos conexos, assim definidos como sendo os direitos dos intérpretes e executantes (como, por exemplo, atores, cantores, e instrumentistas que não forem autores das obras).

Outro aspecto relevante a ser salientado consiste na natureza meramente declaratória do registro do direito autoral junto ao órgão competente, pois a existência do próprio direito precede tal registro. Tanto assim que, segundo o Artigo 18 da LDA, a proteção independe de registro, que, no entanto, deve ser realizado, até mesmo para fins de comprovação da autoria em eventual litígio.

Os direitos autorais são exercidos, mais especificamente em seus aspectos patrimoniais, pelas Associações de classe regidas pelos Artigos 97 e seguintes da LDA e pela Lei no. 12.853/2013. Segundo essas normas, a partir do ato de filiação, as associações como, por exemplo, o ECAD (na área da música), se tornam “procuradoras” dos artistas, adquirindo, assim, uma legitimidade para defender seus direitos autorais tanto junto aos tribunais quanto em outras esferas, e para promover a arrecadação dos proventos auferidos pelo uso das obras.

Esse tipo de cobrança de direitos só poderá ser realizado por associações habilitadas junto aos órgãos da Administração Pública Federal, e, segundo o Art. 98 da Lei no. 12.853/2013, caberá às associações a prerrogativa de estabelecer os preços pelo uso dos repertórios, de acordo com o grau de utilização e com a importância da execução pública das obras. Em outras palavras, como ocorre amiúde entre nós, vemos os interesses privados dos criadores de obras artísticas sujeitos, em maior ou menor grau, à chancela do Poder Público.

Por fim, segundo o Art. 98-B da referida Lei, tais associações de arrecadação deverão dar publicidade e transparência às formas de cálculo e aos critérios de cobrança, aos estatutos e aos regulamentos sobre arrecadação, e às atas de suas reuniões deliberativas.

III – A recente polêmica em torno de dois Projetos de Leis Federais (PL 3968/97 e PL 3992/20)

Durante o atual período de pandemia, dois projetos de leis em discussão no Congresso Nacional têm reacendido a controvérsia em torno da extensão do direito autoral, na medida em que contemplam a possibilidade de isenção de cobrança de direitos autorais em certos casos específicos, como discutido abaixo.

a – PL 3968/97: Segundo este projeto, os órgãos públicos e as entidades filantrópicas seriam dispensados do pagamento dos direitos autorais devidos pela execução pública de obras musicais e litero-musicais, em eventos por eles promovidos. A justificativa apresentada pelo Autor do projeto consiste na ausência de fins lucrativos do Estado e das associações beneficentes, razão pela qual “a dispensa do pagamento de direitos autorais (…) representa um diminuto retorno dos autores à proteção que recebem do Estado.” Em primeiro lugar, vale acentuar que esse projeto data de período anterior à entrada em vigor da LDA, razão pela qual tenho dúvidas acerca da compatibilidade entre a sua proposta e o teor da lei em vigor.

Aliás, tendo a crer que o referido projeto implique em uma supressão excessiva e descabida dos direitos dos artistas. Afinal, a mera autorização de uso a um terceiro constitui um negócio, um ato de comércio entre o autor e o terceiro usuário, ainda que este exerça atividades sem fins lucrativos. E, neste contexto, a obtenção de uma remuneração pelo autor constitui exercício de seus direitos patrimoniais, aos quais ele PODE renunciar por questões de foro íntimo, ou seja, por sua deliberação exclusiva. Tanto assim que a própria LDA confere ao autor a faculdade de colocar a obra à disposição do público, seja mediante remuneração (a título oneroso) ou por simples liberalidade (a título gratuito), como disposto em seu Artigo 30:

Art. 30. No exercício do direito de reprodução, o titular dos direitos autorais poderá colocar à disposição do público a obra, na forma, local e pelo tempo que desejar, a título oneroso ou gratuito.

Igualmente inaceitável, a meu ver, é a justificativa do Parlamentar autor do projeto, ao aludir a um suposto “diminuto retorno dos autores à proteção que recebem do Estado”, quase que estipulando uma obrigação adicional ao autor pelo simples fato de viver em um Estado organizado. Ora, se o autor-cidadão desfruta da suposta proteção do Estado no que se refere à segurança pública, à saúde e à educação (o que chega a soar engraçado!) é porque arca com os tributos necessários à manutenção da estrutura estatal, e, dessa forma, não pode ser adstrito a mais um dentre tantos ônus – e este referente à sua atividade criativa, fruto de um esforço tão laborioso! – para viver em um Estado organizado.

b – PL 3992/2020: Segundo o projeto, não constituiriam violações ao direito autoral: (i)

a execução de obra musical ou lítero-musical, mediante a participação de artistas ou da utilização de fonogramas ou material audiovisual, no âmbito de cultos, cerimônias e eventos realizados por organizações religiosas, sem objetivo de lucro; (ii) a execução de composição musical ou lítero-musical, fonograma e obra audiovisual, por quaisquer meios, para uso facultativo e exclusivo do hóspede no âmbito de unidade de frequência individual de empreendimentos e estabelecimentos destinados à prestação de serviços de hospedagem ou transporte. A justificativa do Parlamentar autor do projeto acerca do item (ii) consiste no fato de que esse dispositivo se refere a unidades tais como quartos de hotéis, motéis, e cabines de navio, inseridos em estabelecimentos que já pagam direitos autorais pela execução pública de obras em seus saguões.

Em relação ao item (i) acima, aplico as mesmas críticas que direcionei ao PL 3968/97.

Quanto ao item (ii), acredito que a questão mereça uma análise mais minuciosa. As unidades (quartos) às quais se refere o dispositivo são oferecidas a turistas em trânsito, no interior de estabelecimentos hoteleiros que, de acordo com a Lei no. 11771/08 (Lei sobre Turismo), são classificados como meios de hospedagem, ou seja, empreendimentos destinados à prestação de serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede.

Portanto, as unidades são visceralmente atreladas e dependentes do estabelecimento ao qual pertencem. Tanto assim é que, no modelo tradicional de hotelaria, não podem ser vendidas, mas tão somente disponibilizadas a turistas em trânsito.

Ora, diante desse vínculo tão estreito entre unidades e estabelecimento, me parece justo que apenas este arque com direitos autorais; caso contrário, iremos deparar com uma situação no mínimo estranha (mencionada pelo autor do projeto), onde a mera disponibilização de aparelhos de TV e rádio no interior das acomodações legitima, por si só, a cobrança de direitos autorais, em paralelo àqueles já arcados pelo empreendimento hoteleiro. Este, aliás, foi o entendimento já manifestado pelo STJ, como também relatado pelo Parlamentar.

Por outro lado, se tivermos em mente a nossa atual situação econômica – agravada, e muito, pela pandemia! -, observaremos que o atual sistema de cobrança, a saber, tanto pelas obras executadas nos saguões quanto nos quartos, talvez onere excessivamente o setor hoteleiro cuja ocupação foi drasticamente reduzida devido à atual crise sanitária. De fato, em um mundo onde as pessoas se veem impedidas de circular, ou muito restritas em sua circulação, elas não irão consumir os produtos da indústria do turismo, incluindo-se aí os meios de hospedagem.

Dessa forma, acredito que o objeto do item (ii) dessa norma deva ser considerado com seriedade no Parlamento, e em caráter de urgência, na tentativa de mitigar os prejuízos da indústria hoteleira, que é uma fonte geradora de tanta receita para o país. Quanto aos artistas, não acredito que venham a ser prejudicados na situação contemplada pelo dispositivo, pois, além da percepção regular de seus direitos autorais (inclusive pela execução das obras nos saguões de hotéis e motéis), essa categoria tem conseguido manter seus rendimentos graças à realização de lives, como observamos desde o início da pandemia.

IV – Eventuais questionamentos acerca da constitucionalidade dos projetos

Em sua nota técnica de repúdio a ambos os projetos discutidos no item acima, o ECAD, dentre outros argumentos em apoio à sua postura, alegou que o STF 1) já teria tido a oportunidade de examinar a constitucionalidade de 2) Leis Estaduais que isentavam do pagamento de direitos autorais associações, fundações ou instituições filantrópicas e aquelas oficialmente declaradas de utilidade pública estadual, sem fins lucrativos. Pesquisei o assunto, e constatei que, de fato, foram propostas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) contra uma Lei Estadual do Amazonas e contra uma Lei Estadual do Mato Grosso respectivamente.

No exame da ADI 5800 contra a Lei 92/2010 do Estado do Amazonas, o Relator Ministro Luís Fux (acompanhado pelos demais Ministros) entendeu que não caberia a um Estado da Federação, no caso, o Amazonas, legislar sobre direitos autorais, pois essa matéria, por contemplar um direito de propriedade, diria respeito ao Direito Civil. Assim, o Ministro sustentou, e a meu ver corretamente, que haveria uma Inconstitucionalidade Formal, ou seja, que a lei examinada teria emanado de um ente da federação que careceria de competência para legislar sobre a matéria. Daí ser uma Inconstitucionalidade Formal, pois apresentaria um vício de forma, de origem.

Por sua vez, ao examinar a ADI 5799 contra a Lei 10.335/2016 do Estado do Mato Grosso, o Relator Ministro Alexandre de Moraes (também acompanhado pelos demais Ministros) entendeu que: (i) haveria uma inconstitucionalidade formal, pois um Estado não possui competência para legislar sobre direito autoral, e que (ii) ao estabelecer a gratuidade para o uso de obras por parte de instituições filantrópicas, associações e entidades de utilidade pública, o legislador daquele Estado teria introduzido uma limitação inaceitável ao direito de propriedade.

Examinadas as duas decisões mencionadas pelo ECAD, acredito que:

(i) na parte em que ambas aludiram à inconstitucionalidade formal, por terem sido as leis promulgadas por Estados, elas não se aplicam ao nosso assunto, pois aqui estamos examinando 2 Projetos de Leis Federais. E não há dúvida sobre a competência do Congresso Nacional para legislar em matéria de direito de propriedade, ou direito autoral;

(ii) a decisão relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes, que examinou o mérito do assunto, se aplicaria apenas ao PL 3968/97 e à primeira parte do PL 3992/20 (sobre “organizações religiosas sem objetivo de lucro”), mas não ao trecho deste PL referente às unidades de hotéis, motéis e cabines de navios.

Portanto, as decisões do STF mencionadas pelo ECAD não parecem comprometer o trecho do PL 3992/20 sobre acomodações hoteleiras e análogas, que, pelo menos no meu entender, deve ser debatido com seriedade, e o quanto antes, pelo Parlamento.

[1] ADI 5800 (MIN. LUIS FUX) – Lei 92/2010 – Amazonas e ADI 5799 (MIN. ALEXANDRE DE MORAIS) – Lei 10.335/2016 Mato Grosso.