Crivella e o politicamente correto da direita, por Felipe Prestes

August 21, 2018

Causou frenesi o caso em que atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, supostamente se reuniu com pastores para fazer acertos de privilégios a serem dados por parte da prefeitura. Não tenho acesso a todas as informações judiciais do processo. Tudo o que sei sobre o caso é o que foi dito nas plataformas de mídia convencionais, ou seja, não estou apto a dar um veredito sobre a culpa ou a inocência do Crivella, e tão pouco é este meu objetivo. Religião e política são assuntos complicados de serem tratados, ainda mais quando os dois se misturam. Tenho consciência de que, a partir de agora, estou pisando em ovos, mas pretendo continuar. Meu objetivo não é atacar os seguidores desta ou daquela religião ou igreja, ideologia ou partido, mas simplesmente compartilhar minhas impressões sobre o caso.

Utopias conservadoras

Não é de hoje que religião e política causam conflito, ainda mais quando se unem. Um dos que perderam a vida em disputas como essa foi Thomas Morus, um inglês católico que se opôs a participar da reforma anglicana, perpetrada pelo rei Henrique VIII, e a reconhecer o tal rei como autoridade religiosa. Henrique não gostou e mandou cortar a cabeça de Morus, que, antes de morrer, deixou escrito um livro emblemático, A Utopia.

Do latim, utopia significa algo como “lugar nenhum, lugar que não existe”. Morus escolheu esta palavra como nome da ilha fictícia Utopia, que não teria os defeitos que o autor via no mundo real. Deste modo, utopia passou a ser uma referência a uma perfeição inatingível, que só existe na cabeça dos que negam a realidade.

Entender o conservadorismo utópico de Morus foi muito importante para que eu compreendesse a forte ascensão do conservadorismo religioso no Brasil neste últimos tempos, bem como o modo como isto influencia comportamentos, posicionamentos e rumos políticos por estas bandas.

A primeira consideração a ser feita sobre a obra: é errôneo ligar utopia à cronologia, como se utopia só se referisse ao futuro, quando na verdade é uma referência geográfica; a segunda consideração, decorrente da primeira, é que é equivocado ligar utopia só a movimentos progressistas, revolucionários, pois a ilha de utopia era, em vários pontos, conservadora, em especial quanto aos seus costumes – era patriarcal, com o sexo antes do casamento sendo punido, enquanto os filhos deviam obediência cega aos pais, etc. Esse equilíbrio nos costumes era conseguido com forte intervenção e regulação estatal, de modo que até o número de pessoas numa família era controlado pelo governo, enquanto o excedente de pessoas era transferido para famílias menores.

Entender o conservadorismo utópico de Morus foi muito importante para que eu compreendesse a forte ascensão do conservadorismo religioso no Brasil neste últimos tempos, bem como o modo como isto influencia comportamentos, posicionamentos e rumos políticos por estas bandas. Sobre os partidários e militantes empenhados desta ascensão, observo que não têm como objetivo deixar pra trás as utopias, como coisas de “socialistas/comunistas”. Pelo contrário. Neles, o pensamento utópico é gritante. Eles idealizam um Brasil cristão conservador perfeito, onde os chamados valores e costumes cristãos são a base política, jurídica, social e cultural perfeita. Eles estão dispostos a uma cruzada moral por essa utopia.

Cruzada moral

Assim, vejo uma tendência desses partidários e militantes a buscar e fazer escolhas políticas em torno de uma utopia cristã. O objetivo dessas pessoas parece ser um Brasil onde os representantes políticos são cruzados morais, “iluminados por Deus” para fazerem o bem. Opositores desses cruzados são anticristãos.  Elas se veem limpando o Brasil, protegendo as crianças de influências malignas, numa guerra no “mundo espiritual”. Deste modo, guerras ideológicas contra o “marxismo cultural”, abstratamente citado como um pacote de pautas progressistas, (como movimento LGBT+, legalização das drogas, aborto, feminismo, etc.) são incitadas.

É difícil mensurar com precisão qual é a real dimensão do movimento e da influência dessas pessoas, mas não se pode negar que elas existem, tem lideranças e representantes e são bastante combativos.

Politicamente correto de direita

Não estou negando os estereótipos preconceituosos com que evangélicos são rotulados. Só que eles não deveriam ser um subterfúgio para deslegitimar questionamentos e discussões sobre os rumos sociais e políticos da organização em grupos de poder relacionados à religião. O politicamente correto de direita já está acontecendo, e ficou evidente nas falas do próprio Crivella, que não se explicando direito, se disse perseguido pela “Globo anti-cristã”.

Mas qual a surpresa?

Qual a surpresa de alguém usar o estado, bancado por todos, para beneficiar alguns? Qual a surpresa na lentidão e ineficiência do serviço público servirem paralelamente à distribuição de privilégios?

O x da questão do Crivella é que ele estaria usando o cargo para privilegiar evangélicos nos serviços públicos. Falando sério, qual a surpresa? Qual a surpresa de alguém usar o estado, bancado por todos, para beneficiar alguns? Qual a surpresa na lentidão e ineficiência do serviço público servirem paralelamente à distribuição de privilégios? Qual a surpresa em ver o estado ser aparelhado por um grupo que quer privilégios em relação aos demais? Ver segmentos religiosos seguindo esse rumo devido às suas utopias conservadoras e seu “politicamente correto de direita” é algo que me entristece, mas não me surpreende.

Felipe Prestes é graduando em Engenharia Civil pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), coordenador local do Students For Liberty Brasil – AM e colaborador do Livres no estado.