Alternativas para o ensino superior e a pesquisa em ciência e tecnologia no Brasil

February 26, 2021

Nos últimos anos, entrou no centro do debate público e nas manchetes dos jornais o tema da pesquisa em ciência e tecnologia e do ensino superior no Brasil. Por um lado, os cortes nos orçamentos das universidades federais em 2019 ilustraram a fragilidade do financiamento do ensino superior público depender primariamente de recursos do Tesouro, dada a grave crise fiscal em que o país se encontra desde 2014 e o pouco espaço orçamentário disponível. Por outro, em 2020, a crise do coronavírus trouxe à tona a importância da pesquisa em ciência e tecnologia feita com qualidade e eficiência, tal como o desenvolvimento da Vacina Coronavac, parceria entre o Instituto Butantan (órgão ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo) e o laboratório chinês Sinovac Biotech, ou, além disso, o projeto de respiradores desenvolvido pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (POLI-USP)[1].

Algumas pessoas poderiam imaginar, a princípio, uma única “bala de prata”, que resolveria todos os problemas do financiamento e da qualidade da pesquisa e do ensino superior. Entretanto, conforme apontado pelo pesquisador em educação Simon Schwartzman[2], o problema talvez seja justamente esse: na educação superior a insistência em um “modelo único” de universidade tem levado na prática à consolidação das desigualdades e à desqualificação da grande maioria dos estudantes e seus cursos, por contraste com um suposto padrão de “qualidade” que precisaria ser melhor explicitado e compreendido.Dessa forma, a solução para os problemas da educação e da pesquisa se dá muitas vezes na adoção de modelos alternativos.

A limitação do modelo de ensino superior no Brasil é latente, sendo o Estado, na prática, o único financiador e prestador do serviço público de ensino superior. Entende-se que isso é uma cooptação política do setor, sendo incoerente com o tratamento dado a áreas afetas ao desenvolvimento do conhecimento, como em P&D.

No que tange ao P&D, o Brasil está alinhado as práticas internacionais, tendo 45% do investimento total advindo de empresas[3]. Como comparação, cita-se o exemplo dentre os países americanos, os Estados Unidos e o Canadá, em que advém das empresas cerca de 60% e 45%, respectivamente, do investimento total em P&D. Dentre os países europeus, a realidade também não é diferente, no Reino Unido e na Itália 45% do investimento total em P&D advém de empresas, França 55% e Alemanha 65%.

Contudo, no que diz respeito à diversidade de fontes de receita das universidades públicas, o Brasil está muito longe dos países desenvolvidos.

O MIT, considerado uma das melhores universidades do Mundo, tem 10% de suas receitas vindos da cobrança de mensalidades de alunos, 19% do retorno de operações de investimentos, dentre outras fontes[4]. Esse tipo de diversidade de fontes de receita quase inexiste nas universidades brasileiras públicas, tornando-as dependentes do orçamento público, que já é estruturalmente engessado com gastos obrigatórios e previdenciários. Uma verdadeira incoerência quando comparado a benéfica participação da iniciativa privada no P&D.

Ocorre que não é só o financiamento que é engessado no Brasil. Outro problema da educação superior no Brasil, segundo Schwartzman2, é a exclusão de alunos de baixa renda de universidades públicas, já que os processos seletivos tendem a beneficiar alunos que estudaram anteriormente em escolas particulares.

No que se diz respeito a esse problema, pode-se afirmar que o sistema de gratuidade universal do ensino superior público representa um generosíssimo programa de transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos, conforme apontado pelo estudo de Daniel José e Daniel Duque[5]. Além disso, como apontam os autores, a atual forma de financiamento faz com que o gasto do Estado por aluno no ensino médio seja 90% menor do que o gasto por aluno no ensino superior, supondo que 60% do orçamento universitário seja aplicado a gastos diretamente relacionados aos alunos. Isso ilustra uma perversa inversão da lógica de investimento em educação pública, que deve priorizar a educação básica. De fato, segundo o estudo Education at a Glance 2019da OCDE, embora o Brasil gaste uma parcela do seu PIB em educação básica acima da média OCDE, o gasto por aluno é inferior à média, enquanto o gasto por aluno no ensino superior está em patamar comparável[6].

O modelo atual de financiamento da educação brasileira, a crise fiscal iniciada em 2014 e aprofundada com a crise do Coronavírus de 2020 e a necessidade de zelar pelas regras de austeridade fiscal (como o teto de gastos) colocam o financiamento da educação pública superior em detrimento com a da educação básica. Assim, é fundamental para a continuidade e o aperfeiçoamento da educação pública superior encontrar recursos além daqueles vindos do pagador de impostos.

Há muitas iniciativas de financiamento e gestão que podem ser trazidas, expandidas ou incentivadas no Brasil. Alguns exemplos são:

– Intensificação de parcerias com a iniciativa privada:

O projeto “OS Escolar”, do deputado estadual Daniel José (NOVO-SP), pode permitir avanços nessa área. O projeto de Lei Complementar Nº 45/2019 adiciona “ensino e pesquisa” na lista de serviços que o governo pode prestar em parceria com as organizações sociais, que atualmente já é composto pela “saúde, à cultura, ao esporte, ao atendimento ou promoção dos direitos das pessoas com deficiência, ao atendimento ou promoção dos direitos de crianças e adolescentes, à proteção e conservação do meio ambiente e à promoção de investimentos, de competitividade e de desenvolvimento”.

O modelo de organizações sociais, regulamentadas a nível federal desde 1998, funciona através de acordos entre o poder público e a organização, financiando-a e definindo as metas consideradas adequadas. Sendo organizações privadas, as OS’s não têm as burocracias e os entraves típicos de organizações estatais, podendo agir com mais flexibilidade e rapidez. O mérito do modelo está justamente em conciliar o zelo pelo interesse público com a eficiência do setor privado.

As OS’s representam um modelo muito bem testado e com diversos exemplos bem sucedidos: o projeto guri (mencionado na justificativa do PL Nº 45/2019) na área cultural; a Fundação Osesp, responsável pela manutenção da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), além de outros projetos; o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que possui quatro laboratórios de referência internacional, dentre eles o Laboratório Nacional de Luz Síncroton (LNLS), responsável por abrigar o Sirius (um audacioso projeto, que promete levar o Brasil para a liderança internacional na produção de radiação síncroton, uma tecnologia aplicada em pesquisas sobre agricultura, energia, saúde dentre outras áreas); o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), desde 2000 qualificado como organização social, um dos principais centros de pesquisa em matemática no Brasil e no mundo e cujo pesquisador, Artur Avila, em 2014 conquistou a medalha Fields, uma das principais premiações internacionais de matemática, sendo o primeiro brasileiro a fazê-lo.

Por fim, vale destacar que embora a lei federal inclua ensino e pesquisa como setores de atuação das OS’s, a ausência disso na legislação do Estado de São Paulo representa uma insegurança na implementação de parcerias nessas áreas. Projetos de legislação estadual análogos, que tragam maior clareza na possibilidade dessas parcerias, poderão incentivar ainda mais o modelo das OS’s.

– A cobrança de mensalidades dos alunos de universidades públicas:

Modelo existente em vários países com alta escolarização superior[7]. Conforme calculado por Daniel José e Daniel Duque, no Estado de São Paulo seria possível aumentar o orçamento do Ensino Médio em 4,5% e do Ensino Superior em 3,3% através de um modelo de cobrança de mensalidade progressivo. Além disso, seria possível diminuir a desigualdade reduzindo o índice de Gini de 0,4851 para 0,4848.

– Fundos Patrimoniais (Endowments):

Fundos permanentes, administrados por organizações gestoras, cujos recursos provém de doações de empresas ou pessoas. Os valores captados pelo fundo são investidos e o montante inicial é preservado, enquanto o rendimento é revertido para alguma organização filantrópica, universidade, centro de pesquisa, etc. Assim, o objetivo de um fundo patrimonial é garantir uma fonte de financiamento perene para a organização apoiada e que se consolide no longo prazo, trazendo assim sustentabilidade e autonomia financeira à instituição.

Nos Estados Unidos, os fundos patrimoniais representam um bem sucedido modelo de financiamento para organizações sem fins lucrativos. Várias universidades americanas de prestígio têm nos fundos patrimoniais (Endowments Funds) uma das principais fontes de receita de origem não governamental (onde muitas das doações vem de ex-alunos). Já no Brasil, apenas recentemente os fundos patrimoniais tiveram uma regulamentação própria, através da Lei Nº 13.800, sancionada em janeiro de 2019 pelo Presidente Jair Bolsonaro, modificando diversos pontos da MP Nº 851/2018 do Governo Temer, dentre eles a isenção do ITCMD (Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos) sobre as doações realizadas.

Ainda assim, as organizações apoiadas pelos fundos patrimoniais podem pedir a isenção do ITCMD, já que atuam em temas de interesse público. Entretanto, o processo é excessivamente burocrático e moroso. Para solucionar esse problema, foi aprovado no Estado de Santa Catarina o PL Nº 0227.7/2020, de autoria do deputado estadual Bruno Souza (NOVO-SC), estabelecendo a autodeclaração da isenção. Seria muito pertinente se outros estados se inspirassem na proposta: com a isenção desburocratizada e agilizada, novos fundos que poderiam apoiar universidades, instituições de ensino e de pesquisa ao longo do país seriam incentivados.

Apesar da regulamentação recente, já existiam fundos patrimoniais associados às faculdades e aos institutos de algumas universidades, como o Fundo Patrimonial FEAUSP[8](associado à Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo) e o Fundo Patrimonial Amigos da Poli (associado à POLI-USP), fundado em 2012, já tendo alcançado o valor de 20 milhões de reais em setembro de 2018[9].

Recentemente, graças à nova legislação, algumas das principais universidades brasileiras estão lançando seus próprios fundos patrimoniais, como a Unesp, Unicamp[10]e USP[11](a Unicamp, por exemplo, estima arrecadar valores na ordem de 100 milhões de reais em 5 anos). O estabelecimento desses novos fundos patrimoniais representa, no longo prazo, uma conquista por maior independência e autonomia financeira, o que trará consequências benéficas para os investimentos em pesquisa, ensino e extensão dessas instituições.

– Naming Rights:

Uma forma de parceria em que determinada empresa ou patrono financia ou reforma um edifício, laboratório, etc, e em troca o imóvel recebe o nome do patrocinador. O modelo de Naming Rights tem sido de muito sucesso no ramo esportivo no Brasil, e pode ser exitoso nos campi universitários, auxiliando na manutenção e restauração dos equipamentos instalados. Em 2019, o MEC propôs a autorização de Naming Righs dentre as várias propostas do projeto Future-se[12], que não foi implementado. Atualmente no Brasil há muita insegurança jurídica na implementação desse sistema, de forma que legislações que regulamentem e incentivem essas iniciativas são bem-vindas.

A implementação e ampliação dessas propostas tem encontrado certa resistência, muitas vezes gerada por um preconceito ideológico que tenta contrapor o interesse público e a iniciativa privada. Essa mentalidade antiquada encontra terreno fértil nos interesses corporativistas de uma minoria barulhenta, que insiste no mantra “público, gratuito e de qualidade” para desmerecer quaisquer propostas inovadoras e modernizantes. Mas os casos citados antes parecem indicar o contrário, “o que é público não precisa ser estatal”[13]. Quantas organizações de referência internacional, como o IMPA e o CNPEM, o Brasil deixa de ter por mero preconceito ideológico? Quantas medalhas Fields, quantos Sirius não deixamos de ter por não permitirmos novas alternativas para a educação e a pesquisa? Sem dúvida, é uma longa corrida que o Brasil precisa correr para atingir o nível dos países mais avançados em educação, ciência e tecnologia. Mas toda corrida começa com alguns passos. E as iniciativas aqui apontadas são passos importantes que podem ser dados.

[1]Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/01/20/28-respiradores-desenvolvidos-pela-usp-ja-foram-entregues-em-manaus-professor-treinou-equipes-pessoalmente.ghtml. Acesso em: 20 jan. 2021.

[2]SCHWARTZMAN, Simon. O ensino superior no Brasil: a busca de alternativas. Revista Educação Brasileira/CRUB-Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, v. 18, n. 37, p. 11-45, 1996.

[3]UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Global Investments in R&D. 2018.

[4]TURCHI, Lenita Maria. Financiamento da pesquisa nas universidades norte-americanas. 2014.

[5]“Mensalidade nas Universidades Públicas de São Paulo”. Disponível em: https://www.eusoulivres.org/publicacoes/mensalidades-nas-universidades-paulistas-um-novo-modelo-de-ensino-superior-publico. Acesso em: 16 jan. 2021.

[6]Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2019/09/10/investimento-por-aluno-no-brasil-esta-abaixo-da-media-dos-paises-desenvolvidos-diz-estudo-da-ocde.ghtml. Acesso em: 16 jan. 2021.

[7]Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/dez-paises-que-cobram-mensalidades-em-universidades-publicas/. Acesso em: 22 jan. 2021.

[8]Mais informações em: https://www.fea.usp.br/alumini/fundo-patrimonial.

[9]Disponível em: https://jornal.usp.br/universidade/fundo-de-apoio-a-poli-alcanca-r-20-milhoes-em-patrimonio/. Acesso em: 25 jan. 2021.

[10]Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/06/25/unesp-e-unicamp-criam-fundos-patrimoniais.ghtml. Acesso em: 25 jan. 2021.

[11]Disponível em: https://jornal.usp.br/institucional/usp-lanca-fundo-patrimonial-para-financiar-projetos-academicos/. Acesso em: 25 jan. 2021.

[12]Disponível em: http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/212-educacao-superior-1690610854/78211-mec-lanca-programa-para-aumentar-a-autonomia-financeira-de-universidades-e-institutos. Acesso em: 22 jan. 2021.

[13]Expressão extraída do artigo “Educação pública não precisa ser estatal”, de Tiago Mitraud. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/tribuna/2019/Educa%C3%A7%C3%A3o-p%C3%BAblica-n%C3%A3o-precisa-ser-estatal. Acesso em: 27 jan. 2021.