A educação sob uma perspectiva liberal

November 5, 2021

A Filosofia liberal desempenhou um papel central nas mudanças políticas e econômicas do mundo desde o seu princípio na Revolução Gloriosa. É idôneo admitir que a liberdade e o indivíduo são unidades fundamentais e indissociáveis à filosofia liberal e exercem uma ação característica ao respaldar ações de teor liberal. No que diz a respeito da atuação liberal em discussões educacionais, confesso que fico um tanto quanto preocupado. A partir do momento que a organização educacional brasileira é analisada com base em equívocos, inverdades e com um repertório informal e cunhado de crenças, estamos falando de qualquer coisa, menos de pluralidade de concepções pedagógicas, muito menos liberais. Espanta-me, sobretudo, o cenário atual em que as discussões liberais se encontram sob uma óptica que não permeia nada além da organização educacional, quando o liberismo é forte, acontece uma natural depauperação educacional. Dito isso, o propósito deste artigo é fazer uma análise a partir de eventos e discussões acerca da educação sob uma perspectiva liberal.

A Evolução da Educação

O pensamento pedagógico evoluiu constantemente através dos anos. Instigados por problemáticas culturais e sociais, debates filosóficos, políticos e econômicos, questões geográficas e metodológicas. O nosso sistema educacional, público e privado, se atualizou para atender às demandas sociais. Reproduzindo Anísio Teixeira, é certo dizer que no Brasil temos “uma educação em mudança permanente, em permanente reconstrução”. A pedagogia contemporânea entende que escolas, salas de aula, turmas e alunos contemplam uma possibilidade inimaginável de individualidades. Junto a isso, existe um complexo institucional que engloba vários elementos educacionais modernos como metas de desenvolvimento de competências e habilidades, estratégias de desenvolvimento sociocognitivo e práticas escolares construtivas ao aluno enquanto indivíduo.

A nossa organização educacional brasileira pode ser compreendida como fruto de anos de debates e influenciada pelos mais diversos tipos de cenários que o Brasil passou nas últimas décadas. Portanto, devemos tratar o sistema educacional moderno do Brasil como o resultado de anos de discussões, (sempre com a presença de liberais), construídas durante conjunturas políticas e sociais nem sempre democráticas. A Lei Nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996 nos trouxe uma perspectiva diferente sobre o sistema de ensino brasileiro. Acalorado pelo evento da redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, a então LDB tornara-se bolorenta e diante de uma nova Constituição e o ideal democrático, que pairava sobre o Brasil, deu início às discussões sobre a nova LDB que levou cerca de 8 anos de construção atravessando as mais diferentes naturezas filosóficas e políticas.

A LDB de 96 trouxe com sua sanção a reafirmação dos valores democráticos para a organização educacional brasileira. Para os fins da temática que abordo, cito o primeiro artigo da LDB;

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

O sistema de ensino brasileiro passou por mudanças e reformas profundas desde a redemocratização, a educação que era centralizada e dirigida pelo Estado passou a ser democrática, cada rede e instituição de ensino realiza a construção da sua identidade com autonomia. Eis aqui a primeira luz sobre do que se trata a nossa educação escolar; um conjunto de práticas de ensino e aprendizado, organizada e sistematizada por metodologias, abordagens e técnicas à lume de um repertório formal e acadêmico pedagógico, psicológico e demais áreas da educação e de contato, conduzida em uma instituição, ou rede ensino, público ou privada com um currículo selecionada que contempla o desenvolvimento de componentes curriculares, competências e habilidades, praticadas no ambiente escolar sob a condução da equipe docente e de funcionários responsáveis pela gestão escolar.

Também podemos apontar como bases do nosso sistema educacional a busca da participação da comunidade e dos pais, a priorização de valores democráticos na gestão e condução do dia a dia da escola e a consideração dos alunos e professores como sujeitos históricos e de direito. Em outras palavras, o sistema educacional brasileiro é composto por uma extensa lista de elementos, que são combinados para prover a melhor educação possível aos nossos alunos. Isso deve ser considerado em qualquer debate, sem embargo de qualquer que seja a perspectiva aplicada — federal, estadual, municipal ou distrital.

Nos debates educacionais, a compreensão da natureza educacional do aluno é uma questão que vem sendo negligenciada com uma frequência avassaladora. Ao mesmo tempo que lhes são colocados a possibilidade de autodesenvolvimento, a contrapartida, mesmo que de maneira implícita, são as exigências do mundo contemporâneo. É nítido que as exigências de preparação de alunos para a sociedade moderna não se configuram como uma problemática, muito pelo contrário, mas é necessário ir além da exigência da educação social e atender as demandas de uma educação individual de maneira dialética com elementos culturais, sociais e regionais.

O olhar educacional, em qualquer modalidade de ensino, deve sim assegurar o pleno desenvolvimento da individualidade, fundamentando-se nos valores de liberdade, individualidade e do livre exercício de pensamento. Isso garante a oferta de uma educação que comporte o pleno desenvolvimento do aluno para a sociedade moderna e, se baseado nos interesses individuais de cada aluno, prepará-lo para a sociedade contemporânea, garantindo que ele possa existir segundo seus próprios ditames individuais e compreender-se, por meio da experimentação prática, como sujeito guiado sob a própria tutela de seus pensamentos e espírito. Em outras palavras, devemos entender as duas finalidades da prática escolar: a educação social e a educação individual.

Faço essa recuperação histórica e filosófica para destacar que estarrece-me perceber a dimensão que toma o debate sobre Homeschooling entre os liberais. Apesar da diversidade de discursos, eles compartilham a tendência de se resumiram a uma prática liberal marcada pela forte e a arraigada crença em um processo de ensino-aprendizagem que não se preocupa em considerar os fatos e conhecimento acadêmico de ponta sobre as metodologias, a história e as políticas pedagógicas. Elas mostram que, ao lado da responsabilidade com o aluno, o sistema de ensino sempre considera os saberes psicopedagógicos pertinentes ao processo de desenvolvimento de crianças e jovens.

A defesa do ensino domiciliar, historicamente, nasce dentro da tradição conservadora. Ela toma como princípio norteador a ideia de que a responsabilidade de educar é exclusivamente dos pais e, portanto, não cabe ao Estado a responsabilidade da educação de crianças e jovens. Esse princípio é orientado por uma boa dose de ceticismo para com o pensamento pedagógico que, enquanto ciência, emergia entre na sociedade moderna pelo pioneirismo de Johann Friedrich Herbart com fortes influências de Immanuel Kant.

Muitas décadas se passaram e, no decorrer do tempo, a pedagogia e suas ciências de contato evoluíram exponencialmente. Há décadas entendemos a educação não como um repasse bancário de conhecimentos, mas sim como um ambiente de troca de saberes e experiências. Tampouco a pedagogia moderna vê a escola como um antro de instrução, ou aluno como uma tábula rasa. Professores sabem que os educandos não têm uma mente vazia a ser preenchida e, portanto, entendem que eles são indivíduos em processo de formação. Assim, é imprescindível entender que a alienação e entraves sobre a evolução do modo de pensar de um indivíduo é uma orquestração contra a liberdade de crianças e jovens no caminho para alcançarem o esclarecimento, processo esse que não exige nada além da liberdade, seja no ambiente que for. Em Immanuel Kant;

“Não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai! O sacerdote proclama: não raciocinai, mas crede! (Um único senhor no mundo diz: raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiseres, mas obedecei!). Eis aqui por toda a parte a limitação da liberdade.

Como professor, tenho o natural olhar para a posição que o aluno ocupa e as diferenças de estrutura, metodologia, profissionais e as possibilidade de socialização que o aluno tem acesso comparando o ensino escolar e o ensino domiciliar. A célebre colocação da sociabilidade como crítica recorrente ao HS é pertinente, e acredito que ela seja mal interpretada por quem defende veemente essa pauta. Rowe (1994) apontou que não faz sentido evolutivo que crianças aprendam somente com seus pais, um exemplo lúcido é que as crianças poderiam deixar de se apropriar de inovações úteis, a menos, claro, que os inovadores fossem seus pais.

Através dos discursos em torno do HS, fica claro que presume-se que um dos papéis importantes dos pais seja a socialização das crianças, a socialização é o processo pelo qual uma criança se torna um membro aceitável de sua sociedade. Aquele que se comporta de maneira adequada, conhece a linguagem, possui as habilidades necessárias e mantém as crenças e atitudes prevalecentes ( Judith R. 1993). Quando o ambiente escolar é excluído e a família toma para si tais responsabilidades educacionais, fica claro a restrição e limitação social, deste modo destaco o que há de conservador nessa pauta. A visão organicista que destaca a família com uma valoração superior às necessidades do indivíduo enquanto filho. Esse conservadorismo é legitimado através do argumento de liberdade de escolha dos pais sobre a educação da criança, não sobre a instituição ou rede de ensino, mas sim sobre a crença “pedagógica” a qual pretendem seguir. E nesse ponto destaco as controversas com o liberalismo pela exclusão do olhar da criança e jovem como indivíduo.

É importante compreender que socialização inerente à prática escolar não é pertencente à mesma natureza da socialização que a criança tem em uma festa de aniversário, em um viagem, passeio, visita a algum conhecido da família e et cetera. Quando falamos de socialização no espaço escolar, estamos falando de um artifício pedagógico que busca o desenvolvimento do indivíduo por meio de práticas sociais no ambiente escolar.

Percebo que o Homeschooling é uma pauta que encontra compatibilidades com o liberalismo, mas não com toda a filosofia liberal — afinal, esta é uma pauta que nasce no conservadorismo, não na doutrina da liberdade. Contudo, em uma análise aprofundada de dados casos fazem-me chegar à conclusão das condições no qual o homeschooling diverge do liberalismo. Para analisar melhor, seguirei comentando alguns fatos históricos em torno dessa pauta.

Afinal, por que seria uma controversa liberal? Para compreender o Homeschooling e os discursos em torno dessa pauta, é necessário olharmos para a historicidade da organização educacional dos Estados Unidos. Desde a época dos colonos, a sociedade americana tinha seus ditames culturais sobre a educação, tanto na definição como na prática, que de maneira sucinta, podemos entender através dos objetivos no processo de alfabetização das crianças e no que deveria ser ensinado. A família tinha a responsabilidade total de educar seus filhos para sociedade baseada no repasse tradicional do moralismo puritano e na alfabetização das crianças para que elas pudessem ler a bíblia — vale frisar que a discussão sobre educação na época não tinha o mesmo entendimento da nossa educação moderna baseada no repertório formal e acadêmico que possuímos, portanto, é certo dizer que a definição de educação era apenas sobre a formação moral e religiosa.

Tais elementos sobre a educação da época incorporou o imaginário cultural americano e foi um dos alicerces do desenvolvimento da organização educacional americana, vale citar a existência, na trajetória da organização educacional americana, das secretarian schools e household education, a primeira tem como prerrogativa o ensino do currículo escolar sobre a própria óptica de mundo, o que em sua maioria, é composta por escolas religiosas e de cunho conservador, já a household education, como dito anteriormente, é a concepção de ensino mais antiga nos Estados Unidos que diante do evento histórico do Compulsory Schooling — em 1852 — Massachusetts — deu início ao debate entre educadores, pais e legisladores sobre o homeschooling.

As fundamentações filosóficas dessa modalidade nasce e se desenvolve no conservadorismo pela admissão de supressão de liberdades individuais frente ao tradicionalismo moral, familiar e religioso, a concepção organicista de sociedade e pelo ceticismo político e filosófico com os eventos do desenvolvimento da academia pedagógica. Em 1925, foi à Suprema Corte Americana o caso; “Society of Sisters of the Holy Names of Jesus and Mary” no qual teve como argumento;

  1.  A teoria fundamental da liberdade sobre a qual repousam todos os governos desta União exclui qualquer poder geral do Estado de padronizar seus filhos, obrigando-os a aceitar instrução apenas de professores públicos;
  2. A Lei de Educação Obrigatória do Oregon (Oreg. Ls., § 5259) que, com certas exceções, exige que todos os pais, responsáveis ​​ou outra pessoa que tenha o controle de uma criança entre oito e dezesseis anos de idade a enviem para a escola pública no distrito onde ele reside, durante o período durante o qual a escola é mantida no ano em curso, é uma interferência irracional com a liberdade dos pais e tutores de dirigir a educação dos filhos e, a esse respeito, viola a Décima Quarta Emenda. P. 268 U. S. 534;
  3. Em um sentido adequado, é verdade que as empresas não podem reivindicar para si a liberdade garantida pela Décima Quarta Emenda e, em geral, nenhuma pessoa em qualquer negócio tem tal interesse em possíveis clientes que lhe permita restringir o exercício de poder do Estado com base no fato de que ele será privado de patrocínio;

 

Décima Quarta Emenda; A Cláusula do Devido Processo proíbe os governos estaduais e locais de privarem pessoas da vida, liberdade ou propriedade sem um procedimento justo.

A decisão da Suprema Corte considerou que “a liberdade fundamental sobre a qual repousam todos os governos da União exclui qualquer poder geral do Estado de padronizar seus filhos, forçando-os a aceitar instrução apenas de professores públicos”.

Em 1972, outro caso semelhante chegou à Suprema Corte, tratava-se do caso Wisconsin v. Yoder, 406 U.S. 205 (1972) no qual os réus, membros da religião Amish da Antiga Ordem e da Igreja Menonita Conservadora Amish, foram condenados por violar a lei de frequência escolar obrigatória de Wisconsin (que exigia a frequência escolar de uma criança até os 16 anos), recusando-se a enviar seus filhos para escolas públicas ou privadas após terem se formados na oitava série. O Tribunal decidiu, entretanto, que os pais têm o direito fundamental de “estabelecer um lar e criar os filhos” junto com o direito de “adorar a Deus de acordo com os ditames de sua própria consciência”. — Nesse caso, a Suprema Corte apoiou os direitos dos pais com uma combinação de liberdade religiosa, deste modo, abrindo precedentes legais amplos que respaldassem todos os casos futuros de mesmo cunho.

É importante citar que a perspectiva liberal atribuída ao Homeschooling é equivocada, nas bases ontológicas e epistemológicas da filosofia liberal, podemos compreender a dimensão no qual a discussão sobre indivíduo repousa, em Antonio Paim;

Os liberais fundamentados no realismo, adotam uma visão pluralista como pressuposto ontológico do individualismo. Tal individualismo, entretanto, não é um individualismo atomista, que nega a existência de propriedades emergentes, sendo fruto da interação social espontânea dos indivíduos que compõem a sociedade. Os liberais defendem um individualismo interacionista, fundamentado no fato das ações individuais sempre acontecerem em sociedade e serem determinadas por expectativas racionais que levam em consideração as possíveis ações dos demais indivíduos, conhecidos ou não, que compartilham com o sujeito a vida societária de uma comunidade.

Tal concepção liberal não encontra compatibilidades com as restrições individuais de crianças e jovens dirigidas pelos pais, pois prevalece o entendimento dos direitos naturais sobre o indivíduo — que influencia sobre a elucubração da décima quarta emenda — independente da idade, sendo interpretada pela Suprema Corte Americana com o viés conservador pela tradição moral puritana e religiosa, o organicismo social e o ceticismo com os saberes educacionais. — Destaco aqui que embora o conservadorismo seja intrinsecamente ligado ao liberalismo, elas se diferem em questões filosóficas, sociais, econômicas e culturais, o que mostra as possibilidades de interpretação pela décima quarta emenda, que ao ver conservador, permite aos pais a ampliação do dirigismo parental, no entanto, sobre à lume da filosofia liberal, a criança é entendida como um indivíduo que retém para si o conceito dos direitos naturais.

Atravessado a historicidade e os conceitos filosóficos. destaco que como liberal gosto de pontuar os insights do liberalismo, afirmando que a limitação de liberdade que ocorre no conservadorismo não é admitida na doutrina liberal, como no caso da limitação de liberdade e direitos das crianças e jovens que são submetidas demagogicamente ao homeschooling. Em Judith Harris, teorias de desenvolvimento nos grupos de socialização no qual destaca que o ambiente familiar, embora fluente, não exerce uma influência determinante na formação e desenvolvimento de indivíduos, sobretudo, que não faz sentido evolutivo que os filhos aprendam somente com os seus pais.

Para finalizar e tornar claro minha posição, afirmo que sou contra o Homeschooling na infância e juventude, sobretudo dirigido pelos pais, no entanto, eu aceno positivamente para jovens, que por livre e espontânea vontade, decidem desvincular-se de uma instituição de ensino para estudar da maneira que melhor lhe representa em detrimento de uma situação institucional escolar pregaria. Apesar do meu aceno positivo, destaco que esse anseio entre jovens destaca uma problemática grave no nosso sistema de ensino, afinal, ele está sendo inviável e sem representatividade pro desenvolvimento intelectual, cultural, social e individual do jovem a ponto de ser elaborado que sair da escola é o melhor para o desenvolvimento. Logo, é importante compreender que o Homeschooling e a modalidade de ensino-aprendizagem autodidata não convergem em torno da mesma pauta, são modalidades distintas e com perspectivas antagônicas.