A defesa da liberdade não pode ser seletiva

April 22, 2020

Hoje é 21 de abril, feriado nacional em alusão a Tiradentes, o mineiro que teria liderado a Inconfidência Mineira em 1792. É uma lembrança bastante apropriada para os dias de hoje, já que, segundo a historiografia oficial, Tiradentes é tido como um mártir da liberdade contra o uso da violência pelo Estado contra seus próprios cidadãos.

Repito: nada mais oportuno para o que estamos vivendo no Brasil, onde pipocam diversos relatos de arbitrariedades estatais a pretexto de conter o avanço do coronavírus. Em defesa deles, dirão alguns: tais atos estão amparados em lei! Mas sempre estão. Dificilmente não haverá uma norma a justificar, mesmo que retroativamente, mesmo que ao custo de sua perversão, uma violência estatal contra a liberdade e os direitos. Além disso, como bem escreveu Frédéric Bastiat, no seu livro-manifesto “A Lei”: “Infelizmente, a lei nem sempre se mantém dentro de seus limites próprios. Às vezes os ultrapassa, com consequências pouco defensáveis e danosas. É o que aconteceu quando aplicaram para destruir a justiça, que ela deveria salvaguardar. Limitou e destruiu direitos que, por missão, deveria respeitar. Colocou a força coletiva à disposição de inescrupulosos que desejavam, sem risco, explorar a pessoa, a liberdade e a propriedade alheia. A lei perverteu-se por influência de duas causas bem diferentes: a ambição estúpida e a falsa filantropia”.

A lei, se quiser manter seu status de respeitabilidade, jamais pode se prestar a justificar violência e arbítrio. Se assim ocorrer, deve ser invocada uma lei maior, fonte dos direitos e das liberdades, para não só fulminá-la, como apontar os caminhos para punir os que dela fizeram, propositalmente, deliberadamente, mau uso. Esta lei maior é a Constituição.

Digo isso para repudiar os atos de violência estatal promovidos com fundamento em decretos de calamidade pública baixados por prefeitos e governadores em razão da pandemia de coronavírus. A razão, claro, é nobre e respeitável, mas como de boas intenções o inferno está cheio, é preciso resguardar os âmbitos dentro dos quais não se pode adentrar violentamente. Refiro-me, claro, ao conjunto de liberdades e direitos básicos dos cidadãos. Isso deve ficar claro especialmente para os que farão cumprir essas normas na ponta da sociedade, que ao se depararam com fatos concretos, sempre correrão grande risco de abusar ainda mais dos comandos abstratos já propositalmente duros. Vejamos um exemplo, que já deixa um gancho para outro assunto.

13 de dezembro de 1968, Palácio Laranjeiras, Rio de Janeiro. Sim, é a data e local da assinatura do Ato Institucional nº. 5, o famigerado AI-5, que endureceu o regime militar. Uma lei, como se vê. Porém, consta que um dos poucos juristas presentes na reunião, o vice presidente da República, Pedro Aleixo, negou-se a assinar o documento. Não há registros oficiais, mas reza a lenda que ele teria questionado os imensos poderes que o ato conferia ao Estado. Informado que o então presidente Costa e Silva jamais faria uso indevido de tais poderes contra o cidadão brasileiro, ele teria respondido: “O problema deste ato não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país, mas o guarda da esquina”. Os resultados todos nós sabemos. E mesmo a ressalva mostrou-se equivocada.

Hoje, inacreditavelmente, há quem reclame e se insurja contra atos de autoridades, municipais e estaduais, e “guardas da esquina” que agem de forma arbitrária contra o cidadão, respaldados por tais decretos de calamidade pública, no que está correto, mas vocifera pela volta do mesmo sistema – ou algo parecido – que baixou o AI-5. O contrário também é igualmente inacreditável, ser contra AI-5, mas defender a prisão arbitrária de cidadãos brasileiros. Em tais casos não se verifica nenhum apreço pela liberdade, e sim uma esquizofrenia, uma seletividade indigna dos direitos e liberdades que ele próprio goza, inclusive para dizer tais disparates.

Tiradentes foi massacrado pelo Estado com respaldo numa lei, e a sua lembrança, como já disse duas vezes neste texto, vem bem a calhar. Repúdio à arbitrariedade em todas as suas formas; rejeição à violência estatal contra os direitos e as liberdades, mesmo que seja exercida com a melhor das intenções; rechaça a atos e falas que vão no caminho do autoritarismo, seja de que cor se pintar. Desejo à democracia e à lei justa, garantidora da paz social e dos direitos, fiada no consenso social e no convencimento, e não na imposição pela força, pois só assim teremos uma sociedade onde a liberdade terá lugar permanente de destaque, inabalável diante das marés revoltas da política e da história.