A Câmara Legislativa quer censurar a arte no DF

August 25, 2020

A Câmara Legislativa do DF nunca deixa de surpreender negativamente. A mais nova veio na última semana, quando os deputados distritais aprovaram um projeto de lei de autoria do presidente da Casa, Rafael Prudente (MDB), que censura a arte no Distrito Federal. O projeto ainda precisa ser votado em segundo turno, mas, se aprovado, representa um retrocesso inimaginável do ponto de vista cultural e uma afronta à Constituição do país.

Diz a proposta que “ficam proibidas as exposições artísticas ou culturais com teor pornográfico, ou que atente contra símbolos religiosos, nos espaços públicos do Distrito Federal.” Para explicar o que seria tal “teor pornográfico”, o autor diz que ele entende-se como “as expressões artísticas ou culturais que contenham fotografias, textos, desenhos, pinturas, filmes e vídeos que exponham o ato sexual e a performance com atrizes ou atores desnudos.”

Pois bem, pelo projeto está criada a censura na capital do país. O projeto não explica em momento algum a cargo de quem ficaria a definição se uma obra de arte ou manifestação cultura é ou não pornográfica. Tampouco nos diz quem ficaria encarregado da fiscalização. Cria apenas a censura, sem nenhum pudor.

Primeiramente, é preciso atentar para a inconstitucionalidade da norma, o que não impressiona vindo da CLDF. Nossa Constituição veda a censura e garante a livre manifestação artística que pretende ser tolhida pela proposta. O projeto, como tantos aprovados pelo legislativo distrital, teria vida curta no Judiciário.

Em segundo lugar, há de se discutir o moralismo tacanho da proposta, que demonstra uma ignorância gigantesca quanto à própria arte. Caso aprovada, estariam banidas de espaços públicos obras de artistas consagrados como Rembrandt (1606-1669) ou até mesmo de Michelangelo (1475-1564). Isso apenas para falar de pintores. Ao abarcar textos, há de se imaginar o impacto sobre mostras literárias em espaços públicos da cidade. Nenhum livro com qualquer descrição de ato sexual poderia estar disponível ao público?

Trata-se da reedição do debate absurdo em torno de um quadrinho vendido na bienal do Rio de Janeiro e que teve ordem de confisco pelo prefeito/pastor ou pastor/prefeito Marcelo Crivella. Aquele beijo gay retratado no quadrinho seria proibido em áreas públicas do DF? Quem definiria?

O pano de fundo dessa discussão, ao falar em defesa das famílias contra “surpresas”, é o moralismo que se impõe sobre a arte, na tentativa de “limpar” o espaço público de tudo que possa ter caráter minimamente sexual. É também um ataque às manifestações culturais que tradicionalmente utilizam-se de críticas sociais através da nudez e que ocorrem em espaço público, mesmo que o público em geral não as frequente.

É o moralismo que tenta se impor quase como uma inquisição, que nega o próprio sexo numa cruzada hipócrita e autoritária. Aqueles que não querem prestigiar esse tipo de arte ou de manifestação cultural têm toda a liberdade para não irem a tais exposições, sejam elas em espaços públicos ou privados. Impedir a livre manifestação cultural, que pode sim envolver temáticas sexuais – que fazem parte da vida – ou nudez, é o projeto censor dos moralistas de plantão.

A verdade é que a arte não pode ser contida. Nunca pode e não será agora. A não ser que o autor do projeto esteja pretendendo queimar obras nas fogueiras do moralismo tacanho, seu projeto é – acima de tudo – inaplicável. Espera-se o que? Que o Governo do Distrito Federal tenha que empreender esforços e recursos públicos para fiscalizar possível teor pornográfico ou nudez em exposições artísticas? Não há realmente nada mais importante para se preocupar no Distrito Federal? Censores do Estado terão que ler todos os livros de uma mostra literária para determinar o que pode ou não ser exposto?

A batalha pode ocorrer ainda nesta semana, quando está agendada a votação do segundo turno da proposta. A deputada Júlia Lucy, mandatária do Livres, votou contra a proposta no primeiro turno e estará atenta para a próxima votação, mas esse é um embate que precisa do engajamento da sociedade. Não é possível aceitar a “proteção da família” como justificativa para qualquer tipo de censura.

O sexo, quer queira o deputado quer não, sempre foi tema das artes ao longo da história. Grandes escritores, cineastas, pintores, poetas e cartunistas dedicaram muito tempo ao esforço de sublimar o sexo através da pena, do pincel ou das câmeras. O moralismo sempre existiu e nunca conseguiu censurar efetivamente a arte, pois ela é manifestação da alma humana, que se expõe através dos temas da vida humana. É preciso deixar claro que não aceitaremos censura, pois trabalhamos todos os dias por um Distrito Federal cada vez mais livre. Livre inclusive do moralismo que suprime a liberdade individual e coletiva.