“A polarização política não desaparece após as eleições”, afirma Persio Arida em entrevista ao Valor Econômico

August 9, 2022

Economia

Persio Arida, criador do Plano Real e ex-presidente do Banco Central do Brasil, foi entrevistado pelo jornal Valor Econômico, confira abaixo a matéria.

Matéria publicada originalmente no jornal Valor Econômico

A superação da crise econômica exigirá a primazia da chamada economia política, diz Persio Arida, um dos formuladores do Plano Real. Além da necessidade de corrigir o legado de “distorções” criadas pelo atual governo e o Congresso, a próxima gestão terá que propor uma série de reformas institucionais nas áreas tributária, orçamentária e administrativa, uma agenda que demandará grande capital político. A tarefa, observa o economista, será hercúlea e terá que ser tocada em meio a um cenário internacional difícil.

Em coautoria com cinco economistas, Persio lançou na sexta-feira um conjunto de propostas para o governo que o país terá a partir de 2023, intitulado “Contribuições para um Governo Democrático e Progressista”. No documento, os autores vão além da proposição de medidas e trazem algo inédito: a combinação de propostas para que o país avance do ponto de vista institucional com outras que assegurem, durante o período de ajuste, o apoio da sociedade às reformas. A ideia é instituir “programas especiais de gastos”, que na área social aumentariam a despesa de 0,4% do PIB para 1% do PIB.

“O governo precisa de reformas que são absolutamente necessárias para o Brasil retomar o crescimento econômico”, disse ele ao Valor. “É sempre possível que tudo dê certo e não precise de nada e o programa de gastos especiais pode ser anunciado mais para frente”, disse.

“Estamos dando primazia a argumentos de economia política em relação aos argumentos estritamente econômicos, o que é uma novidade. Um governo com ímpeto político sustentado apenas pelo carisma do governante, capaz de encaminhar com sucesso as reformas sem violar o teto de gastos, traria efeitos imediatos positivos sobre a inflação e o crescimento. E esses efeitos podem gerar um círculo virtuoso, dando mais credibilidade ao governo e aumentando sua base de sustentação. A pergunta é: teremos esse governante? Podemos nos fiar no atingimento do first best?”, questiona ele. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Conjuntura internacional – Há o desafio de um cenário internacional mais difícil, que certamente complica as coisas para o Brasil. Os bancos centrais, com exceção do Brasil, estão muito aquém do que deveriam estar do ponto de vista do combate à inflação. Talvez não queiram combater a inflação tanto quanto dizem querer. Principalmente no caso dos Estados Unidos.

Polarização política – É um cenário em que, além desses desafios, a polarização política não desaparece após as eleições, como a situação nos Estados Unidos claramente deixa a perceber. Além disso, uma coisa é corrigir o legado de distorções que vêm do governo Bolsonaro. A outra coisa é como avançar.

Medidas para avançar – Basicamente, estamos falando de uma reforma tributária, na linha da adoção de um imposto sobre valor adicionado com uma alíquota única, com mudanças para assegurar que a tributação seja neutra; fazer uma abertura comercial com determinação, se necessário, de forma unilateral, em algumas áreas críticas. A área tecnológica é um bom exemplo. É preciso mudar a política de imigração e trabalho do Brasil, que está muito fechado. É preciso facilitar a concessão de vistos de trabalho para estrangeiros. Outro ponto é fazer uma reforma do Estado na direção de tornar o governo mais eficiente. É preciso fazer com os gastos sociais voltem a ter foco. Outra medida é retomar as privatizações. Nem as estatais criadas pela [ex-presidente] Dilma foram fechadas. A motivação correta é você reduzir o tamanho do Estado na economia e liberar o capital público que está nas estatais para as áreas que precisam. O Brasil vai precisar também de um novo ordenamento fiscal, que envolve não apenas uma nova regra para gastos. Tem um cipoal de legislação de gasto orçamentário que precisa ser simplificado. O Brasil precisa passar por um processo de desconstitucionalização não para mexer em princípios federativos ou em direitos e garantias fundamentais. Detalhamento de política econômica não pode estar na Constituição.

Teto de gastos – Do ponto de vista do controle inflacionário, é claro que o ideal é manter o teto de gastos a ferro e fogo em 2023 e talvez 2024 para assegurar uma política fiscal contracionista. O que me preocupa, no entanto, é muito mais uma consideração de economia política do que de economia estritamente falando.

A questão é como assegurar que um governo comprometido a sério com reformas politicamente difíceis – adoção do IVA, reequilíbrio de taxação para evitar aumentar desigualdades, reforma administrativa, abertura comercial, se necessário com redução unilateral de tarifas, reforma do Estado, reequilíbrio do Orçamento entre o Executivo e o Legislativo, etc. – pode se sustentar politicamente ao longo do tempo? O ideal seria um governante comprometido com reformas modernizantes e ao mesmo tempo carismático o suficiente para ampliar substantivamente a ‘lua de mel’ dos primeiros meses.

No plano do ideal, esse governante só anunciaria os programas especiais de gastos quando a redução de despesas obrigatórias possibilitar abrigar os programas especiais dentro do teto de gastos. Os programas especiais, de que o Brasil tanto precisa, seriam anunciados nesse momento.

Programas especiais – Como fazer para assegurar a sustentabilidade política de um governante comprometido com as reformas? Se o ideal não se materializar, temos que pensar em uma solução ‘second best’ [a melhor alternativa possível]. E o ‘second best’ são os programas especiais. Dificilmente um novo governante reduzirá o pacote ’emergencial’ do Bolsonaro, que corresponde a 0,6% do PIB. Claro que os programas sociais têm que ser melhor focalizados, mas na prática nenhum governante, acho eu, vai reduzir os gastos sociais. Ou seja: os 0,6% do PIB vão se perenizar. Nossos programas [propostos no documento ‘Contribuições para um Governo Democrático e Progressista’], no valor de 1% do PIB, na verdade acrescentam apenas 0,4% ao que prevalece hoje. No texto, deixamos claro que esse 1% tem que corresponder a cortes das despesas obrigatórias e revisão dos gastos (avaliação, metas, etc.) aprovados e cuja materialização acontecerá ao longo do tempo. E mais: teriam uma nova governança, com metas públicas e orçamento transparente, responsabilidades definidas. Seriam a marca política do novo governo. Na essência: entre o ideal preconizado pela teoria e a realidade que nos afigura mais plausível – a de uma lua de mel relativamente curta, de um governo que não preparou os detalhes das reformas durante a eleição, uma polarização que transcende o quadro eleitoral -, há que pensar nos termos da economia política e não da economia ‘tout court’ [sem mais nada a acrescentar].