Uma homenagem a Phillip Roth

May 23, 2018

“Alegria e lamentação. Frustração e liberdade. Inspiração e incerteza. Abundância e vazio.”

Essas foram as palavras usadas por Philip Roth, um dos maiores escritores de nosso tempo, para descrever os seus mais de 50 anos de carreira literária em entrevista ao jornal New York Times neste ano. Roth morreu nesta terça-feira, aos 85 anos, devido a uma insuficiência cardíaca. Deixa uma obra consistente, cuja estética é um verdadeiro refúgio em defesa do indivíduo e da liberdade humana. Em sua homenagem, valorizamos trechos de uma reflexão publicada pela professora Gisele Cittadino, da PUC-Rio, a partir de seu romance A Marca Humana:

“Os dicionários costumam descrever as tragédias como dramas que retratam graves conflitos entre o protagonista e alguma força superior, cuja conclusão desperta no leitor sentimentos de piedade ou horror. Em A Marca Humana, Philip Roth nos coloca, sem dúvida, diante de uma tragédia. O drama retrata a luta individual de um personagem em luta contra o seu destino. Coleman Silk, o protagonista, tal como os heróis gregos que tanto admira, pretende triunfar sobre forças sociais poderosas, e recusa-se a admitir que não tem controle
sobre o curso de sua vida.
(…)
Em um primeiro momento, Philip Roth nos coloca diante de uma traição. Afinal, o país que sempre reivindicou um individualismo radical, capaz de abrigar os sonhos e as esperanças de todos aqueles que pretendem escapar das múltiplas formas de rigidez cultural, é o mesmo que revela tanto orgulho de um comunitarismo que cada vez mais encontra dificuldades para lidar com a diferença e a alteridade. O velho compromisso histórico com a liberdade individual, aquela que ao menos teoricamente nos torna, a cada um
de nós, construtor do nosso próprio destino, parece desfazer-se diante de uma sociedade integrada por múltiplas pequenas sociedades, cada qual com sua diferente interpretação da existência, com seu discurso moral, com seus próprios particularismos. O que Roth vislumbra como traição é a existência de um comunitarismo que ao invés de supor uma sociedade civil diferenciada e ativa, capaz de potencializar as diferentes formas culturais existentes, representa uma sociedade fechada em múltiplos compartimentos estanques, no interior dos quais cada indivíduo – ali situado pelos desígnios da sorte – desenvolve-se como membro de uma comunidade concreta.
(…)
Não há indignidade ou traição na decisão de Coleman de reinventar a si mesmo. Ele simplesmente pretende ser independente e livre. Nem negro, nem branco, nem judeu, apenas alguém que toma o futuro em suas próprias mãos ao invés de permitir que múltiplas comunidades preconceituosas determinem seu destino. Soberano na invenção de seu próprio self, Coleman faz a opção contrária a de seu irmão, Walter, que confia fortemente em suas próprias tradições. Enquanto Walter pretende dar prosseguimento de forma não problemática a algo que outros já iniciaram porque acredita que seus antepassados não pretendem enganá-lo, Coleman opta por um distanciamento reflexivo em relação às tradições que conformam sua identidade. Em outras palavras, Coleman opta por “pular fora”.
(…)
Não há dúvida de que nossas identidades individual e social são constituídas por meio da internalização e da adoção de papéis e regras sociais que são transmitidas pela via de costumes, valores e tradições concretas. Sabemos, no entanto, que um dos traços fundamentais da modernidade é a configuração do indivíduo como sujeito capaz de autorreflexão e crítica. Nesse sentido, ainda que nossa identidade se constitua a partir da sua inserção em uma forma de vida compartilhada – na medida em que aprendemos a nos relacionar com os outros e com nós mesmos por meio de uma rede de reconhecimento recíproco que se estrutura por meio da linguagem – isso não pode significar uma lógica de aprisionamento. Cada um de nós têm a capacidade de se comportar reflexivamente em relação à própria subjetividade, endossando valores ou libertando-se de compromissos, ilusões ou fantasias”.

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Esse vigor reflexivo sobre a potência do indivíduo é marca da obra literária de Philip Roth. Merece todas as homenagens.