Prisão após 2ª instância é luxo para poucos

April 19, 2018

O Supremo Tribunal Federal está diante de um debate importantíssimo acerca da possibilidade de se decretar o cumprimento provisório da pena após condenação em 2ª instância. Tanto a nossa Suprema Corte quanto a sociedade estão divididos sobre a melhor solução ao caso.

Dentre tantos argumentos levantados, um em particular me chamou mais a atenção: o direito de o réu recorrer em liberdade é uma forma de evitar que as cadeias continuem cheias de pretos e pobres.

Essa afirmação parte da premissa de que, como os pretos e pobres são sempre os mais atingidos pelo encarceramento no Brasil, automaticamente, antecipando o momento de possibilidade de realizar a prisão, aumentaria o número dessa parcela da população nas prisões.

Infelizmente, essa alegação é mentirosa. De fato, a população carcerária no Brasil é formada por jovens, pretos e pobres, conforme se verifica nos gráficos disponíveis no link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/reu-pobre-livre-na-2a-instancia-nunca-nem-vi-13042018

Para confirmar empiricamente que os presos pertencem às camadas mais pobres da nossa sociedade, é preciso conjugar com o fator escolaridade. Explico: o Ministério da Justiça aponta que 75% da população prisional brasileira ainda não acessou o ensino médio, tendo concluído, no máximo, o ensino fundamental, mas não traz qualquer faixa de renda.

Por sua vez, o IBGE demonstra uma correlação entre escolaridade e classe social, no sentido de que as pessoas mais pobres, em regra, tem menor tempo de estudo.

Estabelecidas tais premissas, é forçoso concluir, por exercício de lógica, o óbvio: o nosso preso é o jovem entre 16 e 29 anos (55%), negro (64%) e pobre, com reduzida escolaridade (75%).

E nesse momento surge a refutação fática do argumento de que esperar o trânsito em julgado é garantir o direito do pobre, na medida em que 40% de toda população carcerária no Brasil ainda não foi submetida ao julgamento no juízo de 1° grau, conforme relatório do próprio Ministério da Justiça.

Assim, num panorama em que quase metade da população carcerária do país ainda não foi contemplada pelo primeiro julgamento, afirmar que a mudança do entendimento jurisprudencial, no sentido da possibilidade do cumprimento provisório da pena prejudica os mais pobres, evidencia, no mínimo, desconhecimento da realidade.

No HC 84.078/MG – precedente tão citado nos debates atuais –, de relatoria do ministro Eros Grau, esse ponto foi debatido e o ministro Gilmar Mendes, à época presidente da Corte, relatou sua experiência nos mutirões realizados pelo CNJ:

“Nos mutirões realizados pelo Conselho Nacional de Justiça, encontraram-se presos, por exemplo, no Estado do Piauí, que estavam – em números muito expressivos – há mais de três anos presos, provisoriamente, sem denúncia apresentada.

Sem denúncia. No Estado do Piauí, há até uma singularidade. O Secretário de Segurança ou a Secretaria de Segurança do Estado do Piauí concebeu um “inquérito de capa preta”, significando que a Polícia diz para a Justiça que não deve soltar aquela pessoa. É um mundo de horrores a Justiça criminal brasileira, muitas vezes com a conivência da Justiça e do Ministério Público”.

Com a precisão que lhe é característica, o ministro Luís Roberto Barroso expõe a única conclusão possível, após a verificação de todas as informações estatísticas trazidas neste pequeno texto:

“Não usem os pobres! Os pobres são presos antes da decisão de 1º grau. Os pobres são presos em flagrante e lá permanecem até condenação final. Não é de pobres que nós estamos falando aqui.
[…]

Os pobres são presos em flagrante com 100g de maconha ou algumas pedras de crack e ficam lá mofando sem ninguém para se preocupar com eles”.

O racismo estrutural ou institucional que realiza prisões ilegais em massa no nosso país tem sido utilizado, mais uma vez, pelo poder opressor a fim de perpetuar o quadro de regalias impostas por essa minoria privilegiada que comete crimes e segue impunemente em liberdade.

O jovem negro pobre sofre muito antes da condenação em 2ª instância, muito antes da 1ª, ou mesmo sem qualquer processo, diante dos mais variados aspectos da vida. É preciso combater o discurso falso, vil e cruel diante de uma dura realidade que está longe de ser modificada, infelizmente.

Artigo por Irapuã Santana, Doutorando e Mestre em Direito Processual pela UERJ, Ex-Assessor no STF, apresentador do Programa Explicando Direito da Rádio Justiça.