Uma visão liberal sobre o processo seletivo da Magalu

September 24, 2020

Racismo

Esse artigo foi originalmente publicado no Estado da Arte. Leia na íntegra aqui.

A decisão da Magazine Luiza de abrir um processo seletivo para trainee selecionando exclusivamente candidatos negros gerou bastante polêmica. Políticos importantes identificados com o liberalismo não demoraram para criticar a decisão da empresa. A partir de princípios liberais, defendo que medidas como a que foi tomada pela Magalu devem ser aplaudidas. Analisemos a polêmica recente para que possamos construir o argumento.

Ligado ao Movimento Brasil Livre, o vereador Fernando Holiday (DEM/SP) prometeu acionar o Ministério Público para barrar o processo, que seria contrário ao princípio constitucional que veda a discriminação por motivo de raça ou etnia. Esse entendimento costuma vir acompanhado de uma tese alimentada por Olavo de Carvalho: políticas afirmativas, baseadas no conceito de discriminação positiva — que visam criar meios de incluir grupos historicamente excluídos —, seriam, na verdade, partes de um plano mais amplo de “engenharia social” cujo objetivo seria provocar a divisão da sociedade em raças, numa espécie de luta de classes atualizada segundo os preceitos do “marxismo cultural”.

Nesses tempos estranhos, é preciso separar os alhos dos bugalhos. Antes de mais nada, divergir não é sinônimo de racismo. Quem pensa diferente não tem problema de caráter. O debate sobre os meios não significa necessariamente uma divergência de propósitos. Além disso, é legítimo ter uma dose de ceticismo sobre possíveis consequências indesejáveis no uso de critérios raciais — apesar dessa ponderação ficar bastante enfraquecida pelos bons resultados empíricos atingidos até aqui pelas política de cotas raciais nas universidades. Já a narrativa do “marxismo cultural” é uma espécie de caçada reacionária e paranoica aos comunistas escondidos debaixo da cama.

Com o perdão da redundância, uma análise liberal precisa ter como foco a liberdade. Na primeira camada desse debate, a resposta fácil é sobre liberdade de associação e iniciativa. Empresas devem ser livres para contratar de acordo com seus próprios critérios. A ideia de centralizar em algum ente o poder de julgar o que seriam critérios legítimos ou ilegítimos pressupõe um monopólio da razão que, ao fim, é inconciliável com os preceitos do pluralismo liberal.

Ao mesmo tempo, o debate sobre a legitimidade dos critérios e valores adotados nas diversas decisões privadas também é importante e deve ocorrer de forma livre, através da sociedade. Não porque a sociedade tenha uma palavra final sobre a Verdade, mas porque essa abertura ao debate permite a todos nós aperfeiçoar nossas ideias e valores.

Quando desejam testar os limites da liberdade de associação, libertários costumam mencionar o caso do confeiteiro religioso que reivindica o direito de se negar a vender seu bolo para uma festa que contrarie seus princípios religiosos, como um casamento gay. Libertários celebram o direito do confeiteiro de negar o cliente como uma combinação entre a liberdade religiosa e de associação. Já uma resposta liberal reconhece o direito do confeiteiro de não ser obrigado, mas busca convencê-lo a fazer o bolo.

Confesso que não sou capaz de conceber um argumento plausível que reconheça o direito do confeiteiro mas, ao mesmo tempo, recuse o direito da Magalu. É difícil entender quem não vê homofobia em um caso, mas vê racismo no outro.

E com isso chegamos à segunda camada do debate. Por que o confeiteiro devia ser convencido a mudar, mas a Magalu aplaudida? Porque o liberalismo deseja uma sociedade onde todo indivíduo seja livre para desenvolver sua potencialidade humana. Para isso, é preciso diminuir as barreiras sociais no caminho. E o mercado, claro, é uma ferramenta essencial nesse processo.

Uma das belezas de uma sociedade baseada na economia de mercado é a capacidade de criar cooperação entre pessoas diferentes, que às vezes não se conhecem e eventualmente até poderiam se odiar, mas que conseguem atuar juntas na construção de valor mediadas pelo processo impessoal de mercado. Nos tornamos melhores assim. Quando nos permitimos entender as diferenças do outro e, mesmo assim, cooperar, multiplicamos as possibilidades no mundo, ficamos mais ricos e mais livres. Porque focamos a nossa energia não no desejo de moldar o outro totalmente de acordo com as nossas crenças individuais, mas na capacidade criadora que somos capazes de exercer juntos.

Eu desejo viver em um mundo onde o confeiteiro religioso possa ser convencido disso através do diálogo. Afinal, ele também precisa usufruir, como consumidor, de serviços e produtos criados por pessoas de outras crenças e costumes inadequados para a sua religião.

Mas será que, seguindo essa lógica, as empresas não deveriam focar exclusivamente em sua capacidade produtiva e, portanto, não se importar com um critério racial no seu processo seletivo? Bem, é claro que empresas precisam ser capazes de gerar riqueza, mas elas também devem ter valores que orientem a sua organização interna e seu relacionamento com a comunidade. Nesse contexto, diversidade e pluralidade são valores fundamentais aos olhos de qualquer liberal. Em complemento, também há evidências de que a diversidade étnica e social em postos de comando de grandes empresas são um fator de ganho de eficiência. Diferentes perspectivas ajudam a aperfeiçoar a tomada de decisões e aumentam a lucratividade.

Bom, mas sendo assim, a Magalu não deveria fazer um processo diverso, com todas as raças, no lugar de optar por selecionar exclusivamente negros? No mundo ideal, sim. Mas essa é a pergunta em que precisamos sair da teoria para aplicar nossos valores em contato com o mundo real. Como dizia Milton Friedman, “políticas públicas devem ser avaliadas não por suas intenções, mas por seus resultados”. Se processos seletivos amplos tem gerado como resultado prático uma exclusão racial em postos de qualificação, há um problema racial em algum lugar no meio do caminho.

Será que processos exclusivos para negros são a melhor forma de resolver o problema? Eu sinceramente não sei. Desconfio que ninguém realmente saiba. Mas todos nós sabemos que o problema existe e que precisamos tentar resolvê-lo. Fechar os olhos não muda a realidade.

A dificuldade desse debate no Brasil vem do fato de que nossa exclusão racial não é resultado de discriminações explícitas no presente, mas de processos históricos complexos de uma sociedade construída por mais de 3 séculos de escravidão. Diferente da tese olavista do marxismo cultural, a sociedade dividida em raças não é criada pelo esforço de inclusão de agora: ela já existe, como resultado histórico de séculos de exclusão.

Nesse contexto, a tentativa explícita de incluir acaba trazendo um desconforto porque a culpa da exclusão racial não está nessa geração, mas isso não nos exime da responsabilidade. Precisamos encarar que a nossa sociedade tem barreiras sócio-raciais para o desenvolvimento dos indivíduos.

Assim como o amor pela autonomia individual nos leva a lutar para limitar as injustiças do Estado que atacam as nossas liberdades, este mesmo amor precisa nos fazer lutar contra as barreiras sócio-raciais injustas que perduram no nosso país. Não existe uma resposta fácil ou pronta para esse problema complexo. Só testando, inovando, errando e aperfeiçoando é que sairemos do lugar. Por isso mesmo, para além de uma cobrança conformista para que o Estado resolva o problema — uma demanda tão comum neste país repleto de vícios estatistas, que nós, liberais, tanto criticamos na esquerda — precisamos ampliar a diversidade de soluções apresentadas pelo mercado. É justamente o que faz a Magalu com seu processo seletivo. Por isso mesmo, medidas dessa natureza, com o propósito de eliminar barreiras para o desenvolvimento individual e a ascensão social de pessoas oriundas de populações historicamente excluídas devem ser aplaudidas, defendidas e aperfeiçoadas por aqueles que defendem uma sociedade aberta, plural e livre.