Respeite o passado, presidente. Cuide do agora.

April 1, 2019

História

Na semana passada, Bolsonaro determinou a comemoração do golpe de 1964 (que não considera golpe), e anunciou que a ditadura não foi ditadura. Diante da reação, recuou. No dia 31, no entanto, o Palácio do Planalto divulgou pelo Whastapp um vídeo apócrifo que defende que não houve golpe e que o Exército nos “salvou”.

É difícil decidir o que é mais surpreendente ou frustrante: que o presidente não conheça a história de seu país; que divulgue fake news; que decida deliberadamente ofender a uma parcela da população; que foque no passado quando há tanto a fazer no presente.

O Exército botou a tropa na rua contra um presidente eleito democraticamente; o presidente do Senado declarou vaga a presidência com o presidente da República no país; uma junta militar baixou uma Ato Institucional arrogando-se o direito de cassar quem quisesse; o Congresso, constrangido pela ameaça de cassação, elegeu um dos generais que botaram a tropa na rua. Se isso não é um golpe de Estado, nada é (os militares da época nunca negaram a ruptura com a legalidade, por sinal).

O golpe botou um general na presidência, deu-lhe o poder de cassar quem quisesse e adiou as eleições. No mesmo ano, JK, um dos favoritos para a eleição, foi cassado. Em seguida, as eleições foram transformadas em indiretas. Em 1966, os militares constrangeram o Congresso a eleger Costa e Silva, outro dos líderes do golpe. Em 1968, Costa e Silva aprovou o AI-5 suprimindo todas as liberdades civis. O governo perseguiu, prendeu, exilou, torturou e assassinou seus adversários. Censurou a imprensa, as artes e os espetáculos. Proibiu eleições diretas para presidente, governador e prefeitos de capitais. Proibiu o Congresso de legislar sobre matéria financeira, e o fechou várias vezes. Claro que era uma ditadura, e os militares da época não fingiam que não fosse.

A tese de que o Exército nos “salvou” de uma ditadura comunista que mataria milhões é, no mínimo, discutível: como o golpe ocorreu, ninguém sabe como teria sido se não tivesse ocorrido. Talvez o Brasil tivesse se transformado em uma ditadura comunista, talvez não.

Há muitos motivos para acreditar que não teria se tornado uma ditadura comunista. Jango não era comunista. A linha do PCB era a de buscar o poder através das eleições. Não havia conspiração comunista para tomar o poder, e a guerrilha comunista que surgiu em 1966 para combater a ditadura, evidentemente, não existia. O Exército era firmemente anticomunista. Depois de Cuba, os EUA nunca permitiriam outro país comunista nas Américas. É provável que JK, ou Lacerda, vencesse a eleição, que a turbulência esquerdista amainasse, e o Brasil continuasse uma democracia liberal.

Apesar disso, se não houvesse golpe em março de 1964, o mais provável é que houvesse golpe pouco depois, independentemente de quem fosse o presidente. Houve tentativas de golpe no Brasil em 1954, 1955 e 1961: o golpe estava na ordem do dia. E não só no Brasil: entre meados dos anos 50 e dos anos 70, a América Latina foi tomada por ditaduras de direita.

Em 1964, as condições para o golpe eram perfeitas: Jango vivia cercado de comunistas, defendia a estatização de empresas estrangeiras, tinha um discurso incendiário, estimulava a quebra da hierarquia militar, as “reformas de base” que propunha assustavam, a situação do país era caótica. Muita gente bem intencionada achou que o país estava à beira do comunismo e que o golpe era preferível.

No entanto, se o golpe era para impedir o comunismo e preservar a democracia, por que não preservou? Se era só para impedir uma revolução comunista, por que não devolveu o poder aos civis em 1966? Por que, para nos salvar do comunismo, foram necessários 21 anos de arbítrio?

Ainda que houvesse motivo para defender o golpe, não há motivo fingir que não houve golpe, nem que não houve ditadura. E não existe motivo para o presidente brigar com a opinião pública.

Presidente, pare de fazer provocações, arregace as mangas e vá trabalhar. Existe uma reforma da Previdência e um pacote anticrime que precisam ser aprovados.