Reduzir privilégios de membros do Judiciário está dentro do rol de freios e contrapesos

October 13, 2020

Esse artigo foi originalmente publicado no ConJur. Leia na íntegra aqui.

Não existe proposta de emenda constitucional de iniciativa do Judiciário, tampouco do Ministério Público. Isso dito, vale o exercício hermenêutico acerca da possibilidade e da necessidade de extensão da reforma administrativa enviada pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional aos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público.

O debate preliminar, no entanto, diz respeito ao exercício moral. Membros do Poder Judiciário são os que possuem os privilégios mais ultrajantes da República brasileira. Como explicar ao cidadão comum que a aposentadoria compulsória, uma das penas disciplinares dadas aos juízes, é irrevogável mesmo em casos sentenciados por crimes de peculato e lavagem de dinheiro, cujo prejuízo ao erário é da cifra dos milhões de reais?

Não faz muito tempo quando em 2013 os ex-desembargadores do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte Osvaldo Soares Cruz e Rafael Godeiro Sobrinho foram aposentados compulsoriamente por irregularidades durante o exercício da profissão. Cinco anos depois, em 2018, quando as supostas irregularidades restaram inquestionavelmente comprovadas como peculato e desvio de dinheiro, a pena disciplinar não pôde ser revogada nem mesmo após a sentença condenatória.

Conforme argumentou o juiz Ivanaldo Bezerra Ferreira dos Santos, a inviabilidade de cassar a aposentadoria compulsória aplicada como pena aos membros do Poder Judiciário se dá por ausência de previsão legal e a impossibilidade de ampliar as hipóteses punitivas em desfavor dos réus. Necessariamente, tal interpretação se estende a todo e qualquer outro crime existente no ordenamento brasileiro.

Esse caso, porém, é apenas uma das imoralidades que privilegiam os membros do Poder Judiciário. Regalias outras como férias de 60 dias ou mais, penduricalhos disfarçados de verbas indenizatórias que ultrapassam o teto constitucional, entre outros, criaram uma casta que, sob o ponto de vista da moral democrática, não se justifica sob qualquer ótica. Ora, por que pode um juiz ter férias de 60 dias, mais recesso judiciário? Não há explicação para o questionamento que não passe pela ainda confusa coisa pública brasileira recheada de patrimonialismo.

Ultrapassado o debate moral, vale o debate constitucional-hermenêutico. É expresso de acordo artigo 61, §1º, II, alíneas “b” e “d”, que cabe ao Poder Executivo a iniciativa de leis que disponham, respectivamente, sobre a organização administrativa e judiciária, e sobre organização do Ministério Público. A ressalva constitucional para leis de iniciativa do Supremo Tribunal Federal é apenas no artigo 93, no qual estão dispostos os princípios que devem nortear o Estatuto da Magistratura. Sobre esse tema, vale uma análise cuidadosa.

A PEC 32 não retira nenhuma das garantias das quais gozam os membros do Poder Judiciário, quais sejam, vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios. Ao contrário, a proposta acertadamente adiciona um novo inciso ao artigo 37 da Constituição (alíneas “a” a “j”) que veda a concessão de vantagens desarrazoadas e traz outras medidas que devem e podem se aplicar a toda a Administração Pública, inclusive aos membros de poder.

É evidente que existe embaraço de nível constitucional que determina a necessária convivência harmoniosa entre os poderes da República. No entanto, agir legislativamente entre dos parâmetros democráticos para reduzir privilégios do Poder Judiciário e do Ministério Público está dentro do rol garantido constitucionalmente pelos freios e contrapesos (checks and balances).

Aliás, todos os princípios elencados no artigo 93 são passíveis de emenda. Se assim o são, os legitimados para alterá-los são todos aqueles previstos no artigo 60 da CF, quais sejam: o Poder Legislativo ou o Poder Executivo. Nunca o Judiciário, quiçá o Ministério Público.

Veja-se. Nada na Constituição legitima a aposentadoria compulsória como penalidade, ou mesmo 60 dias de férias, ou mesmo penduricalhos disfarçados de verbas indenizatórias. Todas essas deturpações vêm em nível infraconstitucional e é a elas que a reforma administrativa proposta pelo governo deveria também se endereçar.

É evidente que houve escolha política do presidente da República em não inserir os membros de poder no rol reformista da PEC 32, muito embora não haja qualquer óbice sob o ponto de vista constitucional. Portanto, cabe ao Congresso Nacional corrigir tal omissão a fim de que tenhamos a atrasada reforma administrativa necessária ao Brasil. Nunca é tarde para cortar privilégios.