Política industrial: porque não fazer (parte 2)

May 15, 2018

Economia

O falso problema da desindustrialização

Por trás da ideia de que se precisa de políticas industriais está a visão de que o crescimento puxado pela indústria é “bom”, ou mesmo o único viável, enquanto os outros setores da economia são “pouco dinâmicos”, atrasados e incapazes de levar qualquer país ao desenvolvimento. Há aqui uma ordenação que parte da visão equivocada que a inovação vem da indústria e que serviços, por exemplo, são pouco inovadores e/ou crescem pouco. Assim, movimentos de desindustrialização seriam altamente nocivos ao crescimento de longo prazo, dado que configuram a redução do tamanho relativo na economia do setor dinâmico. Para impedir isso além de políticas industriais, deveria se lançar mão de proteção comercial e políticas cambiais que desvalorizassem o real em relação às moedas estrangeiras. Essas duas últimas políticas aumentariam a competitividade da indústria nacional em relação a concorrência internacional.

Há inúmeros equívocos nessa visão. Implícita a ela está a proposição que somos relativamente atrasados porque nos especializamos nos setores “errados” pouco produtivos, deveríamos nos concentrar mais na indústria e outros setores tecnologicamente avançados. Esse é o primeiro equívoco. Artigo recente de Veloso, Ferreira, Matos e Coelho (2017)[1] mostra o contrário: o Brasil é igualmente ineficiente em todos os setores. Em seus exercícios esses autores mostram que o atraso brasileiro não se deve ao fato que o país se especializou em setores pouco eficientes e produtivos, mas que em todos setores e subsetores a produtividade do trabalhador brasileiro é muito inferior à dos Estados Unidos e demais países desenvolvidos. A baixa produtividade brasileira não é um problema de composição setorial. Ao contrário, nossa ineficiência é disseminada por todos os setores. Assim, nosso atraso se explica em grande medida pela baixa eficiência produtiva generalizada, mas esta não tem componentes setoriais relevantes. Voltaremos ao tema de eficiência abaixo.

O segundo erro é não levar em conta que inovação tecnológica não é prerrogativa do setor industrial. Numa semente de soja produzida no Cerrado há embutidos bilhões de dólares em pesquisa desenvolvida pela Embrapa e empresas privadas. A tecnologia gerada por essas pesquisas foi responsável por um espetacular aumento de produtividade de muitas outras culturas no país, bem como da agroindústria. As exportações agrícolas dispararam não só porque a demanda externa cresceu, mas porque o Brasil tornou-se tecnologicamente avançado e altamente competitivo. E claro, setores de TI, finanças, biotecnologia, entre muitos serviços, estão na ponta de lança da inovação.

O terceiro equívoco, e uma má notícia para economistas desenvolvimentistas com fixação na indústria, é que no longo prazo a indústria vai de fato perder participação relativa no produto. Isto ocorreu em todas as nações hoje desenvolvidas: conforme a população vai ficando mais rica, consome-se relativamente menos bens agrícolas e, em um segundo estágio, menos bens manufaturados. Isto não implica em queda absoluta ou redução do produto e emprego industrial, significa que em países ricos o setor de serviço acaba sendo dominante.  Esse processo é denominado “transformação estrutural”. Na Espanha, por exemplo, entre 1960 e 2000, o emprego na agricultura caiu de 42% do total para 7%; na indústria, de 34% para 30%; enquanto no setor de serviços, saltou de 24% para 63%. Na Bélgica, no mesmo período, o emprego na agricultura caiu de 29% do total para 2%; na indústria de 28% para 23%; enquanto nos serviços cresceu de 43% para 75% do total.

Números semelhantes se observam em todos os países mais avançados do planeta. Nos Estados Unidos, hoje mais de 80% da mão de obra trabalha no setor de serviços. Em nosso país, o setor de serviços – comércio, transporte, finanças, trabalhos domésticos, governos, restaurantes, etc. – empregava somente 20% dos trabalhadores em 1950. Hoje esse número se aproxima dos 70%. Assim a desindustrialização é um fato, e para o crescimento de longo prazo importa saber como se comportará o setor de serviços, ponto que discutiremos brevemente no final deste artigo.

De onde vem nosso atraso?

O quarto equívoco da visão “industrialista” comum a muitos economistas desenvolvimentistas tem a ver com o papel da eficiência econômica. Teorias antigas de crescimento econômico enfocavam, quase que inteiramente, os investimentos em capital físico – máquinas, equipamentos e estruturas – como o motor do desenvolvimento de longo prazo. Este tipo de teoria gera, como contrapartida de política econômica, incentivos à formação bruta de capital, programas de poupança forçada, créditos fiscais e todo tipo de política industrial.

As teorias modernas levam em conta não apenas as dotações de fatores de produção de uma economia – terra, trabalho de diferentes níveis educacionais, e capital – mas também as condições institucionais, tecnológicas e políticas que determinam a eficiência com que esses fatores interagem ao serem empregados na produção. Em particular, exercícios baseados nessas novas teorias permitem a decomposição da diferença de renda per capita existente entre um país rico e um pobre, identificando-se quanto da pobreza deste se deve, de um lado, à ineficiência geral de sua economia e quanto decorre, de outro lado, da insuficiência de capital e baixa escolaridade.

Estimativas recentes (veja Ferreira e Veloso, 2012[2]) mostram que o grosso da enorme diferença de produtividade entre o Brasil e os EUA – ou entre nós e qualquer pais rico – se deve à ineficiência produtiva e baixa escolaridade, muito pouco à escassez de capital. Esse último fator seria responsável por menos que 15% do gap de produto. Mais de 60% da diferença se deve ao fato que somos muito pouco eficientes na produção e o restante a diferenças educacionais.

Uma discussão racional sobre que tipo de política econômica que deve ser adotada para estimular o crescimento de longo prazo do país deve partir de estimativas objetivas como essa acima. O país não precisa de políticas industriais ou cambiais que protejam o setor manufatureiro e que subsidiem o investimento.  Mesmo que bem-sucedidas, e nossa história mostra que esses episódios são raros, essas políticas só atacariam uma parte pequena – 15% – do problema.

O caminho para o crescimento está no foco em políticas que visem aumentar a eficiência geral da economia e que atinjam os agentes econômicos de forma mais equânime.  São medidas institucionais, micro (e algumas macro) reformas voltadas para a redução de distorções. Os exemplos são muitos: políticas de melhoria do ambiente de negócios; de livre fluxo de tecnologia; menores barreiras ao comércio de bens e serviços; aperfeiçoamento do sistema regulatório; privatização; redução da tributação sobre a folha salarial e sobre investimento, bem como eliminação de impostos em cascata. Uma estrutura tributária mais enxuta e menos distorciva incentivaria o investimento e a formalização.

Assim, não há nada de intrinsicamente ruim na diminuição do papel da indústria. Isto é inevitável e um fato do desenvolvimento de todos os países. A questão aqui é se faremos isto com eficiência ou se o inevitável crescimento do setor terciário no Brasil se dará com baixa produtividade e simplesmente com incorporação de uma mão-de-obra pouco qualificada. Podemos ser uma economia de serviço especializada em setores sofisticados e com grandes componentes de inovação e tecnologia, mas para isso precisaremos de uma mão de obra muito educada. Caso contrário permaneceremos uma economia de serviços atrasada, onde a baixa escolaridade da mão de obra só nos permite a especialização em atividades pouco produtivas e de baixo componentes tecnológicos.

Este (e nossa baixa eficiência) nos parece um tópico muito mais relevante para o desempenho do país no longo prazo que política industrial e mesmo política cambial, uma outra obsessão de economistas desenvolvimentistas. Nisso e em nossa baixa eficiência produtiva estão as raízes de nosso atraso.

[1] Veloso, Ferreira, Matos e Coelho.  “O Brasil em Comparações Internacionais de Produtividade: Uma Análise Setorial” in Bonelli, R., Veloso, F. e Pinheiro, A.C. (Org), Anatomia Da Produtividade No Brasil, Elsevier, 2017, pp. 35-62

[2] Ferreira, P e F. Veloso. “O Desenvolvimento Brasileiro no Pós-Guerra”. In: Veloso, F.; Ferreira, F.; Giambiagi, F. e S. Pessôa, (Org.). Desenvolvimento Econômico: Uma Perspectiva Brasileira. Elsevier-Campus, 2012, pp. 129-165.