O mal-estar do liberalismo

October 24, 2022

Política

Semanas atrás, o psicólogo americano Jonathan Haidt protagonizou uma situação que diz muito sobre a nossa época. Ele iria apresentar um trabalho na Society for Personality and Social Psychology e se surpreendeu com uma exigência feita aos pesquisadores: antes de apresentar seus trabalhos, eles deveriam enviar à Sociedade uma carta explicando “como o seu trabalho promove os objetivos de equidade, inclusão e antirracismo”. Haidt então explicou à presidente da entidade que, como cidadão, poderia concordar com aqueles objetivos, mas que como cientista seu foco era a busca da verdade e que ele não iria subordinar seu trabalho a algum tipo de agenda política. Lembrou que era um erro induzir pesquisadores a uma atitude monotemática, “ajustando” suas pesquisas para que tivessem algum foco na “justiça social”, tal como definida pela associação, e que “ciência e ativismo político raramente se misturam bem”. O tema é complicado. A Sociedade exigia aquele compromisso por achar que isso fazia parte de sua luta por “direitos”. Haidt, por sua vez, achou o contrário: que impunha a ele e a outras pessoas subordinar sua atividade intelectual a uma agenda política. Coisa com a qual ele não concordava e que, portanto, também feria seus direitos. E por isso terminou por renunciar à Sociedade.

Pensava sobre essas coisas enquanto lia o saboroso livro de Adam Gopnik, A Thousand Small Sanities, contando a aventura do liberalismo e sua conquista, degrau a degrau, da sociedade de direitos. Gopnik é um liberal no sentido americano. Entende o conceito para além da garantia das chamadas “liberdades negativas”. Daí sua ênfase da história dos sindicatos ingleses e dos direitos sociais; de Mary Wollstonecraf e seu clássico sobre a emancipação feminina; da jornada gloriosa de William Wilberforce pelo fim da escravidão, na Inglaterra. Isso tudo até a saga de Martin Luther King e as recentes conquistas do movimento gay pela igualdade civil. A história descrita por Gopnik é conhecida e incorporada ao melhor da tradição liberal.

Ninguém seriamente diverge do primado da igualdade de direitos e seu passo seguinte, envolvendo educação básica e um mínimo social garantido, como sugeriu Hayek. A pergunta relevante dizia respeito ao contraste entre essa história de liberdades e aquela atitude impositiva e um tanto ranzinza que levou ao protesto de Jonathan Haidt. Algo bem exemplificado na onda de “cancelamentos” de professores universitários, nos Estados Unidos, bem documentada pela Foundation for Individual Rights in Education (Fire), identificando 537 casos nos últimos sete anos. Coisas que vão desde a proibição de estudos com resultados “politicamente incorretos”, passando pelo veto ao filme Othello, de 1965, com um ator usando blackface, até a demissão de um professor pela simples ida a um ato político conservador.

“A obsessão identitária alimenta a reação conservadora”

O que isso nos diz sobre o liberalismo atual? Em que momento os movimentos de direitos e igualdade passaram, eles mesmos, a exigir enquadramento, restrições à liberdade de expressão, subordinação da vida acadêmica à ideologia? Mark Lilla talvez seja o autor que mais tem se dedicado a essa análise. “O liberalismo americano caiu em uma espécie de pânico moral sobre identidade racial, de gênero e sexual”, disse ele. Francis Fukuyama definiu o tema como um tipo novo de iliberalismo, pautado pela sobreposição das identidades de grupo à autonomia individual, e aversão aos valores do pluralismo que estão na base das democracias liberais.

A obsessão identitária alimenta sua contraface: a reação conservadora. Ela vem dos grupos “sem retórica”, excluídos do arco convencional da diversidade. Os culturalmente “atrasados”. O redneck americano. O cafona, o evangélico, o chucro, no triste debate brasileiro. Pesquisa recente mostrou que é exatamente a classe C o bastião do voto conservador no Brasil atual. Nos Estados Unidos, a socióloga Arlie Hochschild, de Berkeley, foi pesquisar o sentimento dessas pessoas, na América profunda, e chegou a uma imagem icônica: “É como se elas estivessem numa fila, esperando pacientemente chegar a sua vez, no sonho americano, e de repente aparece um monte de gente furando a fila, passando na frente”. Vem daí boa parte do atual suporte aos novos populismos, e o recado de Hochschild é claro: é preciso compreender o incômodo das pessoas, ao invés de atirar pedras e satisfazer o próprio ego.

É precisamente aí que reside o mal-estar do liberalismo atual. Temos algum consenso em torno dos chamados direitos de primeira geração. Liberdades fundamentais e uma base de oportunidades para todos. Consenso frágil, é verdade, quando se observa o que anda acontecendo com o tema das liberdades no Brasil de hoje. O ponto é que nos temas difusos das guerras culturais, onde reina, talvez como sintoma, a atual obsessão identitária, não há sequer pretensão de consenso. Há conflito e uma contínua fragmentação do tecido social, e esse era o sentido da crítica de Lilla. Pautas que vão longe da vocação universalista dos temas clássicos do liberalismo. Uma coisa é exigir que ninguém seja discriminado, na sociedade, por razões de gênero ou raça. Outra inteiramente distinta é ajustar permanentemente a estrutura de direitos em favor de um ou outro grupo, ou subordinar a vida intelectual, quando não a própria linguagem, à subjetividade sempre em expansão desse ou daquele grupo em uma sociedade diversa.

O mesmo vale para o novo conservadorismo cultural. Todos parecem esperar do liberalismo algo que põe em xeque sua própria natureza. A ideia que tomou forma, na modernidade, quando as ideias passaram a voar e a verdade se partiu em mil pedaços: de que nosso destino era viver em sociedades abertas e que não caberia mais ao Estado oferecer uma ética abrangente, uma estética ou um sentido existencial à vida humana. Parecemos agora enredados na ilusão de um consenso perdido. Sobre o papel do homem e da mulher, sobre o tipo de humor a praticar, pronomes e imagens públicas a aceitar, em um universo potencialmente infinito. Talvez seja a proximidade a que subitamente fomos jogados, na arena digital, e sua falsa impressão de que formamos uma comunidade. E quem sabe mesmo por isso seja a hora de lembrar por que o liberalismo foi inventado: porque um dia descobrimos, a duras penas, que um consenso desse tipo era impossível, a não ser sob doses cavalares de autoritarismo. E por isso renunciamos. Por isso decidimos agir com um saudável ceticismo. Decidimos limitar o poder, cultivar a tolerância e negar ao Estado qualquer prerrogativa sobre a verdade.

Algo bem expresso naquela frase famosa colocada pelos pais fundadores da República americana na base de sua Carta de Direitos, assegurando a todos não o direito à felicidade, mas o direito à “busca pela felicidade”. Ideia que combina uma promessa e uma renúncia, e que valeria hoje relembrar.

Artigo publicado originalmente na Veja