O fogo nos racistas

July 4, 2022

Liberdade de Expressão

Racismo

Em junho de 2020, uma enfermeira fez campanha para denunciar um caso de racismo e agressão contra sua irmã, por meio de postagens em rede social. Segundo narrou, sua irmã comprou um produto para cabelo e, ao verificar que não era o desejado, retornou à loja para fazer a troca. No entanto, além de a representante do estabelecimento ter se negado a cumprir seu dever legal, ainda a agrediu fisicamente e com xingamentos racistas. Lamentavelmente, o caso foi arquivado, e se optou pelo apoio comunitário para que sua dor fosse minimamente aplacada. Houve a veiculação da imagem de uma pessoa segurando um cartaz com a frase “fogo nos racistas”.

Assim a repressão à violência racial e física se transformou numa censura ao direito de protestar e de externar o descontentamento.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em recurso judicial, entendeu que a enfermeira ultrapassou o limite da liberdade de expressão, determinou a retirada da publicação e o pagamento de R$ 5 mil por dano moral à dona da empresa.

Um dos argumentos usados foi que o bordão incitava a violência e, a partir de então, o debate estava posto na sociedade. Um sentimento de injustiça, desamparo completo e desespero foi interpretado pelo Judiciário como um perigo. O grito do ofendido foi visto como ameaça para o ofensor, ignorando o ensinamento de Martin Luther King, quando dizia que a rebelião é a linguagem daqueles que não são ouvidos.

Após a disseminação dessa notícia, o rapper Djonga, criador da expressão inserida na música, cujo nome é “Olho de tigre”, tentou se inserir na discussão jurídica sobre como o trecho de sua obra deve ser compreendido pelo Estado brasileiro. Para arrematar os ingredientes desse caso, durante a execução da canção no show do artista, em 18 de junho, um ator literalmente pegou fogo no palco, construindo uma performance histórica e muito comentada em todo lugar.

Os críticos e censores afirmam, sem nenhum fundamento, que a frase incentiva o crime e que o racismo deveria ser combatido pelas vias legais, com instauração de inquérito e processo penal. Dizem que negros nunca poderiam espancar ou atear fogo em racistas. Porém é óbvio que essa posição enfrenta moinhos de vento, visto que a comunidade negra não sai pelas ruas acusando, julgando e executando sentenças de morte.

É só fazer o levantamento e pôr em perspectiva: o lançamento da composição se deu em 2017. Quantas vezes algo relativamente próximo dessa hipótese aconteceu?

No entanto o contrário é diariamente verificado e denunciado, além de ser objeto de inúmeros protestos. Segundo os relatórios elaborados pelo Ipea na série do Atlas da Violência, entre os anos de 2017 e 2019 foram assassinadas 127.880 pessoas negras, correspondendo a mais de 75% de todos os homicídios do país.

Nesse panorama, é sintomática a hipocrisia do Estado proibindo palavras inofensivas, enquanto milhares de pessoas são dizimadas anualmente.

É preciso defender sem trégua a liberdade de expressão e o combate à discriminação racial.

Artigo publicado originalmente no jornal O Globo