O auditor de costumes

September 15, 2020

Democracia

Esse artigo foi originalmente publicado no Estado de S. Paulo. Leia na íntegra aqui.

Muitas análises sobre a reforma administrativa se concentram no risco de fazê-la sob o atual governo. Para alguns, ela permitiria que o presidente na prática acabasse com órgãos relevantes que o desagradam, e que perseguisse servidores simplesmente por opinarem contra ele. Um risco do atual arranjo, porém, é ignorado: o das políticas dos atuais governantes serem irreversíveis, ao menos para o erário.

Façamos um exercício de imaginação nos próximos parágrafos. Imagine que o presidente consiga por medida provisória criar um órgão novo e pioneiro. Atendendo a pleitos da ministra Damares, contrata milhares de novos auditores federais para trabalhar ali. É a carreira de auditor federal de costumes.

Esse auditor azucrina a vida da população aplicando inéditas e rigorosas interpretações para as normas legais existentes. Seu foco vai do consumo de bebida alcoólica em público à produção audiovisual a que crianças possam sofrer exposição. Os auditores federais de costumes rapidamente conquistam equiparação com carreiras de nome parecido, mas que ganham muito mais – elevando seu custo.

O ministro da Educação criaria graduações e pós-graduações em globalismo em todas as universidades federais, com milhares de vagas por ano e ensejando a contratação correspondente de professores concursados. O ministro do Meio Ambiente emplaca também um novo curso em todas elas, o de ambientalismo de resultados.

O ministro das Relações Exteriores consegue ainda mais, a criação da Universidade Federal da Integração com o Visegrado – Univil. Além dela, para facilitar a cooperação com os novos aliados, são criados dezenas de diplomas de letras/tradução em polonês, checo, eslovaco e húngaro.

Já os novos agentes da Força Nacional pelo Nascituro tentam enquadrar um amplo leque de condutas como apologia ao aborto. Ainda, inspirado por Trump, o governo cria a quarta força das FFAA, a Força Espacial, sediada em Alcântara.

Insatisfeita com estes rumos, a população elege já no 1º turno Guilherme Boulos como presidente da República.

Ele prometera desfazer todas estas medidas mas, sem maioria no Congresso, não consegue sequer reorganizar as estruturas criadas. Também não pode demitir os auditores federais de costumes ou os novos professores e servidores das universidades. Por isso, fica sem os bilhões que precisava para cumprir suas promessas de campanha.

Tentou ao menos colocar em outras atividades o grande contingente de servidores, mas eles derrotam o governo na Justiça: entende-se haver “desvio de função”. Os servidores, além de estáveis, têm o direito de trabalhar com o que foram contratados para fazer.

O presidente Boulos quer cumprir sua principal promessa de campanha: erradicar o desemprego. O programa Emprego Universal é baseado na visão de que o Estado deve funcionar como empregador de última instância, oferecendo vagas, ainda que parciais, para desempregados trabalharem em atividades que exigem baixa qualificação mas são importantes para a sociedade. A proposta empolgou os eleitores.

O Emprego Universal, mesmo desidratado pela falta de dinheiro, contratou milhares para atuar no cuidado a crianças ou idosos em centros comunitários; fazer reparos na manutenção das cidades; e atuar no reflorestamento. Mas o principal programa do presidente é derrubado no Judiciário: sindicatos de servidores da educação, enfermagem, conservação/limpeza urbana e de carreiras do meio ambiente processam o governo por “burla ao concurso público” – com razão. Não pode o Emprego Universal contratar os desempregados para atribuições que são consideradas desses concursados.

Os exemplos anteriores são propositadamente extremos, mas ilustram dificuldades dos mandatários, incluindo governadores e prefeitos, em empreender seus planos de governo. É muito difícil desfazer ações de outras administrações ou usar a folha de pagamento do Estado de forma mais inclusiva – ainda que essas medidas sejam sufragadas pela maioria da sociedade.

O arranjo atual é insustentável: há pouco espaço para novas políticas públicas porque o orçamento é ocupado pelos resquícios de políticas anteriores. Servidores contratados previamente não podem ser desligados, frequentemente têm direito a aumentos salariais automáticos com o tempo e parte deles ainda têm regras de aposentadoria favorecidas. Até movimentá-los pode ser difícil (mesmo se o Congresso extinguir seu órgão/cargo por lei). Algum tipo de reforma administrativa é necessária para tornar o Estado mais permeável às atualizações nas demandas do eleitorado. Uma boa reforma prestigia a própria democracia.