Liberalismo muito além da economia

April 2, 2019

História

Sobre o liberalismo, aqui no Brasil, reina uma confusão que beira a ignorância. Confundem-no com outras ideologias, desconhece-se sua história e seus aspectos essenciais. E, compondo a má compreensão, reduz-se seu escopo à esfera econômica. É fundamental vencer tal desconhecimento e desinformação, pois com certeza, uma vez em contato com informações básicas, a imensa maioria se descobrirá muito mais liberal do que se imagina. Neste texto, o objetivo será chamar a atenção para como o ideal liberal excede em muito a discussão econômica.

Comecemos pelo mais elementar. O liberalismo não é um pacote fechado e intransigente de ideias e noções. Ele é um desenvolvimento, um movimento, que simultaneamente transformou radicalmente a sociedade (não sendo exagero dizer que é a fonte da modernidade histórica), e transformou-se ao longo dos tempos. Antes de tudo, o sonho liberal nasceu contra o arbítrio perpetrado seja pelos monarcas e soberanos políticos, seja pelos senhores feudais. Os primeiros encarnavam os abusos tirânicos, as perseguições jurídicas e pessoais, os privilégios para poucos, o estrangulamento fiscal, as censuras e
proibições para expressar os mais legítimos anseios e convicções: religiosos, políticos, artísticos, etc. Os últimos representavam a impossibilidade das pessoas usarem sua criatividade e sua força de trabalho para ganhar seu sustento da forma como melhor lhes apraziam.

Assim, direitos e garantias tidos por todos como essenciais – e mesmo inegociáveis – são frutos das conquistas liberais. Exemplos: direito ao voto, à liberdade de opinião, de expressão, de experiência religiosa, à liberdade artística; direito de organização, de ir e vir, de privacidade, de julgamento justo, e tantos outros. Quem é contra tais direitos e garantias?
Apenas defensores de ditaduras e regimes totalitários. Ora! Eis outra boa maneira de conhecer o que é o liberalismo, reconhecendo seus eternos inimigos e adversários: os ditadores e seus apoiadores, os totalitários e os tirânicos de toda ordem.

Como se vê, uma sociedade liberal é aquela onde impera a liberdade, o império da lei, o constitucionalismo, as possibilidade de autorrealização individual e a democracia.

Politicamente, nos dias atuais, salvo as exceções já mencionadas (os adoradores de ditaduras, totalitarismos e assemelhados) a democracia liberal é um absoluto consenso. O que não significa que não haja espaço para aperfeiçoamentos institucionais! Muito pelo contrário. A história é viva, as sociedades mudam, as tecnologias avançam, as dinâmicas do cotidiano se alteram. E é nesta realidade pulsante, composta por pessoas e grupos com suas diferenças e
singularidades, por intermédio de acordos e consensos forjados em meio à grande diversidade, que os ideais liberais norteiam os refinamentos e aprimoramentos das instituições.

John Gray, um dos importantes pensadores liberais, comentando acerca do que unia as várias correntes do liberalismo, falou assim: “Há uma concepção específica, de caráter nitidamente moderno, que é comum a todas as variantes da tradição liberal. Quais são os elementos que compõem essa concepção? Ela é individualista, porque sustenta a proeminência moral do indivíduo em relação aos desejos de qualquer coletividade social; igualitária, na medida em que confere a todos os homens o
mesmo status moral, não admitindo que existam diferenças de natureza política ou legal entre os seres humanos; universalista, por afirmar a homogeneidade moral do gênero humano e atribuir uma importância secundária a certos aspectos históricos e culturais; e meliorista, por considerar a possibilidade de correção e aperfeiçoamento das instituições sociais e políticas. É essa concepção do homem e da sociedade que dá ao liberalismo uma identidade que transcende a sua enorme diversidade e complexidade”.

Nota-se aqui outra característica crucial do liberalismo. Ele se distingue vigorosamente dos projetos abstratos, dos delírios de profetas seculares, que em suas manias e grandeza juram ter encontrado o caminho e a forma – a ser imposta a força de quem duvidar – para a sociedade perfeita. Modelos especulativos, intangíveis, que servem apenas para garantir a apego ao poder de déspotas oportunistas. O liberalismo não tropeça nessa tolice perigosa. Reconhece e lida, da maneira mais responsável e racional possível, com as fraquezas e imperfeições humanas. Em suma, o liberalismo não se escora de modo fácil, mas irresponsável, no irrealismo. Roberto Campos alertou uma vez: “A primeira coisa a se fazer no Brasil é abandonar a chupeta das utopias em favor da bigorna da realidade.”

Por fim, ser pragmático e realista não é sinônimo de indiferença ante os males do mundo. Ser alheio ao drama, por exemplo, dos pobres, miseráveis e desvalidos. Jamais. O liberalismo, entretanto, não confunde o mandamento ético de eliminar injustiças com a impostura de – em nome da justiça – promover opressão política. O liberalismo não é oposto de preocupação social! Mais isso deixo para o próximo texto.