Liberalismo em tempos de Covid e medidas iliberais

May 8, 2020

Coronavírus

Esse artigo foi originalmente publicado no Estado de S. Paulo. Leia na íntegra aqui.

A pandemia da covid-19 provocou um impacto avassalador na economia, na saúde e no ânimo dos brasileiros. Dia e noite estamos sendo bombardeados por dados quase sempre muito tristes. Seguimos na busca de soluções para contra-atacar um inimigo invisível que ninguém sabe bem como se comporta. Esse cenário de perspectivas sombrias é um terreno fértil para populismo, medidas autoritárias e soluções equivocadas que cobrarão um preço alto quando a pior fase da epidemia passar.

Os suspeitos de sempre correm para decretar a morte do liberalismo. Não pela primeira vez. Estaríamos diante de uma fênix? Minha resposta vai no sentido oposto. Os coveiros estão cegos. A crise reafirma a importância da liberdade individual e da sensibilidade social que sempre estiveram no DNA da melhor tradição liberal.

Como bons herdeiros do iluminismo, devemos buscar luz na razão e nas experiências positivas que já tivemos. Se fossem pensadas no vácuo, as medidas restritivas de suspensão da economia de mercado, do direito de ir e vir, do fluxo internacional de pessoas e de alguns produtos seriam bastante antiliberais. No atual contexto, no entanto, protegem o bem mais precioso que uma pessoa pode ter: a vida. E com o perdão da obviedade, a vida continua sendo condição necessária para o exercício de qualquer forma de liberdade.

Assim como em outros momentos, nossa responsabilidade é cuidar dos mais frágeis no presente, sem lhes sacrificar os sonhos do futuro. Para isso, diante do desafio que vivemos, é bastante claro que metas fiscais, equilíbrios orçamentários e conceitos de boa governança econômica para tempos normais devem ser revistos para o horizonte imediato.

Ao mesmo tempo, o esforço de guerra contra a covid-19 não pode perder de vista o pós guerra. A reconstrução do mundo que herdaremos será mais ágil, ampla e inclusiva na medida em que tenhamos hoje a capacidade de implementar políticas públicas que respondam à urgência sem se contaminar pelo desespero.

Além de consenso, a criação de ampla rede de proteção com transferências diretas aos mais pobres é uma herança do pensamento de liberais como Thomas Paine, Stuart Mill e Milton Friedman. Por não segui-los antes, enfrentamos esse momento sem uma poupança segura e teremos que pagar uma conta mais cara. Pior: precisamos correr para construir agora o que o poder público engessado em despesas obrigatórias não foi capaz de construir nos tempos de paz, apesar do orçamento trilionário que consome 40% da riqueza nacional todos os anos.

No âmbito da economia, é importante diferenciar o socorro estatal momentâneo e amplo em circunstância excepcional daquele velho patrimonialismo que escolhe campeões, transfere renda de pobres para ricos e distorce o mercado. As medidas de isolamento são necessárias para conter a epidemia independentemente da saúde prévia de cada empresa. Muitas terão o faturamento zerado por alguns meses, sem que seja fruto de uma escolha própria ou uma derrota para a concorrência. Nesse contexto, proteger as pequenas empresas, além de um ato de humanidade com os empregados, é essencial para manter postos de trabalho fundamentais para a retomada que viveremos. “Sempre que a ação pública é capaz de mitigar desastres dos quais o indivíduo não pode se defender e consequências contra as quais não pode se precaver, tal ação deve, sem dúvidas, ser empreendida”, escreveu Hayek no clássico O Caminho da Servidão, de 1944.

Na contramão desse esforço de guerra, começam a surgir medidas e proposições legislativas para ampliar poderes de forma abusiva, diminuir a transparência ou simplesmente promover políticos. É o caso das tentativas de alargamento de prazos das MPs e da Lei de Acesso à Informação, bem como das inúmeras requisições administrativas que têm criado insegurança jurídica e disputa entre entes federativos, vide o conflito por respiradores entre o Estado de São Paulo e o Governo Federal.

O alerta contra excessos do poder estatal continua pertinente. Catástrofes não flexibilizam os direitos humanos, entre eles a propriedade privada, nem revogam os estímulos que regem o mercado. No lugar de impor sua força, abusando de prerrogativas, os governos devem atuar como líderes, convocando a colaboração da sociedade, direcionando incentivos para aproveitar o potencial criativo da ampla força de trabalho qualificada e com jornadas reduzidas.

A hora é de unir forças. Os esforços conjuntos de governos, sociedade civil e empresas nos tornam mais fortes do que a lógica monopolista e centralizada. Quem sabe a solidariedade despertada pela tragédia também não possa nos ajudar a revisar privilégios históricos. Afinal, a velha lógica do Estado que se serve da sociedade em benefício dos amigos do rei precisa dar lugar a um Estado devidamente limitado pelas instituições vibrantes da democracia liberal e que seja capaz de servir à sociedade. Cooperando, venceremos a covid e, então poderemos voltar a sair de nossas casas para desfrutarmos juntos dos prazeres da liberdade.