Liberalismo, bode expiatório e a cantilena desarmônica

March 27, 2020

Filosofia Política

A crise desencadeada pela pandemia do Coronavírus está causando um enorme impacto social e econômico no país. Nesse caldeirão, o acirramento político em boa medida insuflado pelo presidente Jair Bolsonaro está levando a uma crescente tentativa de transformar o liberalismo em palavra demoníaca, espécie de bode-expiatório responsável pelas agruras nacionais.

É curioso, no entanto, o caráter frouxo e variável que a palavra assume no debate público. Para aqueles que se identificam com a esquerda, o menosprezo ao termo liberal é antigo e duradouro. Ao mesmo tempo, é quase nulo o esforço para apreender o conceito com alguma precisão. Se fosse levada a sério, a tarefa envolveria história, fundamentos e uma teia interna de significação discursiva. Na prática, liberal (ou neoliberal) surge no discurso apenas como algo equivalente a egoísmo, elites, ganância e opressão. Ou seja, liberalismo transfaz-se em vicário do mal.

Nos dias atuais, menos por ardil e mais por ignorância, a esquerda personifica o liberalismo no presidente Bolsonaro, a despeito dele próprio se dizer um nacionalista conservador. O passaporte para o erro é carimbado com as tintas de alguns acólitos bolsonaristas, cujo slogan sugerido para o adesismo ao governo é: “liberal na economia, conservador nos costumes” (sic).

Até aqui não há muita novidade, apenas um platô constituído por muitas camadas de desconhecimento e um segmento de oportunismo. Todavia, o liberalismo também virou saco de pancada do bolsonarismo.

Para este movimento assumidamente de direita, liberalismo é sinônimo de vagueza, covardia, inocência e cosmopolitismo. O mal supremo é o comunismo e a esquerda — para a qual, dizem, os liberais trabalham como idiotas úteis, por não combaterem com denodo de cruzado as artimanhas do inimigo nos diversos campos (cultura, moral, economia, política). Pior: não raro se aliando a ele.

Neste segundo grupo imperam os tons paranoicos e a ambiguidade. O fenômeno é típico de quem, por ser desprovido de qualidades essenciais, tenta tomá-las de empréstimo a outrem. O problema é que essa tentativa, ao mesmo tempo, danifica o conteúdo recebido e nutre a suspeição dos ressentidos.

Em verdade, à luz histórica, tudo exposto não passa de fartura da repetição, da comum e corriqueira situação a qual se vê o liberalismo. Seja de esquerda ou de direita, a radicalidade dos extremos traçam uma senda na tantalizante tarefa de alcançar mundos ideologicamente puros e abstratamente resolvidos.

Apesar de ser banal na experiência política e social, a transformação do liberalismo em Judas a ser malhado num duradouro e frenético Sábado de Aleluia pode render bons aprendizados quando observada com atenção. Analisemos um caso do presente, ilustrativo do argumento que venho propondo, a fim de encerrar o texto.

A gravidade social da situação fez emergir naturalmente as demandas por soluções junto às instâncias governamentais. Linhas de crédito especiais, proteção direta e substantiva aos mais pobres, desempregados e trabalhadores informais, etc. Representantes da esquerda não tardaram em anunciar o grande derrotado: o liberalismo.

A linha de força do argumento é a pressuposição obtusa de que qualquer ação estatal seria contrária ao ideário liberal, num divertida confusão entre liberalismo e anarquismo. Falam da necessidade de um novo New deal, esquecendo que o grande arquiteto do programa, John Maynard Keynes, foi um liberal declarado, e que o keynesianismo econômico — apesar da postura frequentemente antiliberal dos keynesianos brasileiros — não passa de uma vertente do liberalismo.

Do outro lado da gangorra heteróclita, os conservadores sustentam que os liberais estão sucubindo à social-democracia, ao apoiar e propor ampla rede de proteção social e incentivos econômicos. Com isso, não só esquecem de quem efetivamente foi Keynes, como desconsideram que um insígne liberal como Milton Friedman não apenas concordou com aspectos cruciais do New deal, como foi idealizador de programa de renda mínima.

Em resumo, esquerda e direita conseguem, de maneira simplória, atacar o liberalismo ora por não permitir que o estado intervenha no social e na economia, ora, opostamente, por intervir demais. Enquanto isso, fieis ao seu espírito empírico e pragmático de tentativa e erro, liberais continuam fazendo o mais importante: propondo medidas, ações e programas concretos para a solução da crise.