Evidências da reforma administrativa

September 8, 2020

Economia

Por Ana Carla Abrão, economista e sócia da área de Finanças, Risco e Políticas Públicas da consultoria em gestão Oliver Wyman.

Esse artigo foi originalmente publicado no Estado de S. Paulo. Leia na íntegra aqui.

Dentre os méritos, avanços, defeitos e estranhezas do projeto de reforma administrativa apresentado pelo governo federal na última semana, há um ponto que salta aos olhos. A opção por um projeto de emenda constitucional (PEC) para elaborar uma reforma que em grande parte poderia e deverá ser feita por meio de projetos de lei poderia se ver justificada por três pontos: pela necessidade de inclusão dos poderes autônomos na reforma; pela urgência na extensão dela a Estados e municípios e pela proposta de mudança no Regime Jurídico Único que na Constituição de 1998 garantiu o vínculo estatutário a todos os servidores públicos. As duas últimas de fato constam da proposta, embora para a segunda haja outros caminhos possíveis. Mas o estranho mesmo foi a solução dada à primeira.

Na mesma PEC que estende o novo modelo funcional para todos os servidores públicos, incluindo servidores federais, estaduais e municipais de todos os poderes, excluem-se parlamentares, juízes, promotores e procuradores. Paradoxalmente, são esses servidores, elite do funcionalismo – em particular os representantes do Poder Judiciário, aqueles que gozam hoje de vários dos privilégios que o projeto visa a eliminar por meio de vedação constitucional. Não que não haja (muitas!) distorções a serem corrigidas entre os servidores dos diversos poderes, mas apresentar um projeto que veda pontos imorais como férias de 60 dias ou aposentadoria compulsória como punição para atingir quem não os tem e deixar de fora aqueles que os têm é, no mínimo, contraditório. Ou não, afinal esse é um dos pontos que confirma a percepção de que as condicionalidades impostas pelo presidente da República para o envio da PEC ao Congresso reflete as suas preferências pessoais, em detrimento de conceitos técnicos relevantes.

Para corrigir isso teremos uma batalha adicional, que deverá contar com a sensibilização do Judiciário. No Legislativo, esse tema já avançou graças a um estudo elaborado a pedido do presidente da Casa, o deputado Rodrigo Maia, ferrenho defensor da reforma. No processo de convencimento do Judiciário, valem algumas evidências que, embora não suficientes para provocar no presidente Jair Bolsonaro a vontade de usar uma PEC na sua plenitude, deverão incitar o debate que se inicia no Congresso.

Temos um dos Judiciários mais caros do mundo, que nos custa o equivalente a 1,4% do PIB. Em países desenvolvidos como Portugal, Espanha, Suíça ou Reino Unido, esse custo não atinge 0,4% do PIB. Aqui, quase 90% dos custos são vinculados a salários, verbas indenizatórias, gratificações, etc. Além disso, embora o gasto total tenha dobrado entre 2011 e 2020, a contrapartida esperada de uma melhoria processual não veio. Os ganhos de eficiência, medidos em números de processos baixados, não ultrapassaram os 28,1%. A trajetória de aumento da remuneração média no Judiciário, em particular a partir da Reforma do Judiciário aprovada em 2004, é também um fato a se notar. A média salarial dos servidores do Judiciário, segundo informações do Atlas do Funcionalismo Público do Ipea, atinge atualmente R$ 12 mil mensais. Valor que equivale ao dobro do salário médio que se observa no Legislativo e supera em mais de 3 vezes a média salarial no Executivo. Além disso, ao contrário do que ocorre no Executivo, a distribuição salarial no Judiciário é menos dispersa. Aqui 85% dos servidores recebem acima de R$ 5 mil por mês, frente a apenas 15% no Executivo.

Dois marcos no tempo da história ajudam a explicar o descolamento nos gastos e salários do Judiciário (mas posteriormente acompanhada pelas carreiras da elite do funcionalismo público também nos outros poderes). O primeiro deles foi a Emenda Constitucional 45, que fez a reforma do Judiciário. Embora ali tenha-se avançado em vários aspectos, inclusive com a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – com sua louvável função de aperfeiçoar o controle e a transparência administrativa – vieram na esteira a multiplicação de carreiras, os reajustes salariais, culminando na década seguinte em revisões de carreiras e reajustes salariais generalizando privilégios no mínimo questionáveis num país tão desigual. Às férias de 60 dias – que hoje representam uma fonte adicional de renda aos magistrados – e à aposentadoria com manutenção do salário como punição, somam-se as diversas verbas indenizatórias e os auxílios moradia, combustível ou, pasmem: auxílios livro, paletó, clareamento de dentes, grupo de corrida, etc. Não surpreende que só em 2019 os chamados penduricalhos tenham atingido a surpreendente cifra de R$ 6,2 bilhões, segundo o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Vem também no Judiciário que mais se desrespeita ao teto salarial e se aprova, em tempos de pandemia, o assessor exclusivo “imunizado”.

Se queremos construir uma administração pública moderna, eficaz e justa, não podemos ignorar as evidências de que o Judiciário é parte necessária dessa revisão, devendo entrar, de forma ampla, aberta e irrestrita na reforma administrativa que começa a ser discutida.