Entre Isaiah Berlin e Guimarães Rosa – o liberalismo em “Grande Sertão: Veredas”

June 28, 2018

O presente ensaio não pretende afirmar a existência de uma teoria política subjacente à narrativa do Grande Sertão: Veredas, nem tampouco uma filosofia moral estruturada sistematicamente; trata-se mais bem de idéias recorrentes na obra que podem ser relacionadas com discussões na história das idéias políticas e éticas e na concepção de indivíduo na filosofia moderna e contemporânea. Pretendo, principalmente, relacionar aspectos do texto rosiano com algumas idéias acerca da “contra-ilustração” e da crença em uma “natureza humana” fixa na obra do filósofo Isaiah Berlin, autor cujas formulações sobre os conceitos de “liberdade positiva” e “liberdade negativa” tornaram-se referência obrigatória na filosofia política contemporânea.

Antes de entrar especificamente nessas relações que pretendo estabelecer, faz-se necessária uma pequena explanação sobre o pensamento de Isaiah Berlin no que concerne às idéias que serão utilizadas neste estudo. O fulcro do pensamento de Isaiah está na contraposição entre o pensamento iluminista francês e o romantismo alemão, numa síntese que assume e nega aspectos de ambos os movimentos intelectuais. Berlin, como enfatizou seu biógrafo, Michael Ignatieff, ordenou sua vida intelectual em volta do tema da liberdade e da traição da liberdade:

“Em 1950 e 1951, leu furiosamente as obras dos philosophes: Diderot, Helvetius, Holbach, La Mettrie, Voltaire; também começou a ler, pela primeira vez, o romantismo alemão: Schelling, Herder, Fichte. (…) Ali, pela primeira vez, começou a montar sua visão histórica da transição entre o Iluminismo e os ideais românticos de liberdade”

(Ignatieff, 2000, p. 211).

Berlin percebeu o que para ele era a divergência essencial entre os dois movimentos: a idéia da racionalidade como meio para uma moralidade universal. Os pensadores iluministas achavam que a razão poderia conduzir os homens por um caminho de comunhão. Bastava que os homens aceitassem a racionalidade como guia que os conflitos morais e éticos deixariam de existir. Esse otimismo derivava da crença de que os valores humanos poderiam ser derivados de uma natureza humana universal que podia ser analiticamente perscrutada. Quer dizer, todos os homens, se usassem de sua capacidade racional, encontrariam um único e comum caminho para suas ações: “Todo o programa ocidental de reforma aperfeiçoadora derivava desse racionalismo otimista” (Ignatieff, 2000, p. 211).

Isaiah Berlin alertou sobre o elemento tirânico que estava por trás dessa crença. Os românticos já haviam denunciado a ameaça à liberdade que tais ideais representavam. Por um lado, Berlin mantinha a fé em certas bandeiras do Iluminismo, como o ataque à autoridade e ao dogma religiosos; a campanha pelos direitos humanos e pela liberdade pessoal contra a tirania do Estado. Por outro, via as imperfeições desse racionalismo que pregava que os valores humanos podiam ser diretamente derivados de uma universal natureza humana. Os românticos entenderam, ou sentiram, que os valores eram criações humanas que variavam no tempo e no espaço, de acordo com a forma de vida e de luta pela sobrevivência de cada sociedade. Portanto, os valores são históricos, relativos a cada cultura em que são engendrados e, até mesmo, contraditórios, visto que há elementos de contradição na própria natureza humana.

Isaiah percebeu a contradição básica do iluminismo europeu: há a afirmação libertária fundamental de que os homens devem ser livres para escolher, porém essa condição está restrita à escolha daquilo que é racional desejar.

Todo esse percurso introdutório serviu para chegar à encruzilhada de idéias que é o Grande Sertão: Veredas.

Parto de uma questão inicial: qual é o objetivo do personagem Riobaldo no romance? Riobaldo não tem respostas definitivas sobre nada. Ele se angustia por não saber o que é o bem e o mal. Para ele, o Real “se dispõe na travessia”, não como um conceito, mas como um drama vital. A dúvida está sempre presente nos caminhos desse jagunço que nunca se sente plenamente integrado com as suas circunstâncias: não é igual aos demais jagunços, tampouco igual às pessoas da cidade. É um homem dividido internamente, que não apresenta uma natureza bem definida, muito menos um sistema fechado de valores ao qual sempre obedece. É, ao mesmo tempo, racional e irracional, cético e crente, forte e fraco, amante e niilista.

A complexidade desse personagem ficcional construído por Guimarães Rosa vai servir aqui como uma espécie de tipo ideal a ser relacionado com algumas concepções presentes nos ensaios de Isaiah Berlin.

A Política e os Indivíduos

Comecemos por uma citação fundamental de Riobaldo:

“Por que o Governo não cuida?! Ah, eu sei que não é possível. Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias… Tanta gente – dá susto se saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons…”

(Guimarães Rosa, 1988, p.8)

Este é o trecho do livro de G. Rosa em que as convergências e a semelhança com as idéias de Isaiah Berlin fica mais patente, no sentido de que não pode haver jamais uma solução política que dê conta da complexidade e das contradições íntimas que formam a natureza dos homens – nem num plano individual, nem no coletivo. A práxis política nunca vai levar a uma satisfação absoluta de todos os indivíduos: o governo não cuida de forma absoluta da felicidade dos indivíduos porque nenhuma instituição tem esse poder (e nem deve ter). As promessas utópicas na história das instituições políticas, invariavelmente, levaram a estados de supressão das liberdades individuais e a uma tentativa de homogeneização da sociedade civil.

As “idéias arranjadas”, às quais Riobaldo se refere, são essas falsas promessas de soluções infalíveis e definitivas para as grandes questões humanas pela via da política. Essa idéia tão presente e recorrente na história do pensamento político ocidental, desde Platão, de que a natureza humana pode se realizar completamente, caso a sociedade e o Estado sejam organizados de maneira racional, pressupõe que todos os indivíduos buscam, em essência, os mesmos fins existenciais, em todos os momentos e em todas as partes. Atingido esse estágio de perfeição, a sociedade estacionaria eternamente, fechada em sua própria indefectibilidade, legitimada pelo estado de felicidade geral.

Para os filósofos e pensadores racionalistas, o conhecimento é uma espécie de meio de salvação espiritual, moral e política. Um substituto, numa sociedade mais avançada, para a religiosidade. Riobaldo, intuitivamente, dá-se conta de que não existe uma verdade simples e absoluta para todas as questões. Se existem verdades, elas “aparecem” como perspectivas de um sujeito em dada circunstância. O personagem, evidentemente, não formula essas idéias com esse nível de elaboração conceitual e perspectiva histórica: ele utiliza sua própria experiência e circunstâncias para encontrar o que se poderiam chamar “verdades dramáticas”.

A filosofia, diz-nos Lefebvre, considerando o que foi e tem sido hegemônico no pensamento ocidental, pretende um “projeto de ser humano livre, acabado, plenamente realizado, racional e real ao mesmo tempo, em uma palavra: total” (Lefebvre, 1972, p.21). Não obstante, nossa natureza, diz-nos agora Riobaldo, “é malcompletada”. A permanente angústia do personagem é resultado de sua ânsia em querer entender o mundo, quer dizer, a racionalidade que estaria subjacente ao funcionamento da realidade. Porém, como ele mesmo vai se dando conta, “o mundo não é entendível”. Isso representa o fim de toda uma visão teleológica do lugar do homem no universo. O ser humano nunca está acabado e o seu papel no mundo não está previamente traçado:

“Careço de que o bom seja bom e o ruim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado…”

(Guimarães Rosa, 1988, p. 191-2)

O Grande Sertão, ambiciosa reconstrução literária do mundo pelo intelecto de Guimarães Rosa – pode parecer paradoxal -, é também um atestado de que o autor estava ciente de que é necessária uma atitude de humildade perante o real. Rosa assume uma postura contra a arrogância do intelecto, respeitando a ambivalência, a mutabilidade, a incerteza e o aspecto caótico e inapreensível do mundo da experiência comum. Ele tenta, como pode, evitar as idéias prontas, os chavões, a verdades absolutas e os sistemas fechados de pensamento.

O que existe no Sertão engendrado por Guimarães Rosa é a dúvida, a incerteza, enfim, o eterno conflito, não só entre as pessoas, mas de cada um consigo mesmo: “Natureza da gente não cabe em nenhuma certeza” (Guimarães Rosa, 1988, p. 367). O Sertão é a imagem de um mundo plural, vago e sem sentido fora das convenções e valores humanos. O conflito se intensifica quando o protagonista entende que mesmo os princípios morais das pessoas podem entrar em choque: a maldade que ele enxerga na natureza de Hermógenes, por exemplo, não lhe é compreensível. Ricardão, outro chefe jagunço, aliado de Hermógenes, apresenta, digamos, uma outra perspectiva ética, mais sutil do que a pura “ruindade animal” de Hermógenes, pautada por interesses pessoais e econômicos. Mesmo aqueles que Riobaldo considera amigos e aliados são essencialmente diferentes dele: Zé Bebelo, com suas motivações políticas, “arte em esturdice, nunca vista”; Sô Candelário, com seus rudes valores de honra e compromisso; Joca Ramiro, com sua visão de liderança e de responsabilidade sobre a vida e a morte dos seus homens e dos inimigos.

Desses conflitos insolúveis entre os princípios morais, infere-se que a esfera dos juízos de valor e da política é o âmbito não da racionalidade pura (lógico-conceitual), mas da razoabilidade (retórica e persuasão), justamente porque os fins não são conspícuos e nem universais. No Grande Sertão, antes mesmo que Riobaldo, Zé Bebelo é o personagem que parece compreender a natureza aberta e negociativa da política. Isso fica evidente na sua autodefesa durante seu julgamento pelos chefes jagunços. Na ocasião, ele, através da sua habilidade retórica, consegue reverter o que seria seu destino natural naquela situação – a morte. Esta passagem é importante porque exemplifica bem a capacidade da palavra (do discurso) de colocar a univocidade da realidade em xeque e negar as convenções e a tradição.

Arrisco-me a dizer que a ética que vai sendo construída por Riobaldo, baseada nas reflexões sobre suas próprias experiências, principia pelo reconhecimento das diferenças entre as pessoas, numa visão de pluralidade. A própria hierarquia entre os demais personagens é demarcada por Riobaldo de acordo com a força e a singularidade de suas personalidades: alguns parecem estar numa espécie de harmonia letárgica com o seu meio, com os usos e costumes do Sertão – são parte da paisagem em que estão inseridos, sem contestá-la, apenas vivenciando-a. Outros tomam uma posição mais ativa frente às circunstâncias – é o caso dos grandes chefes jagunços e do próprio Riobaldo. A construção de uma “voz” própria, individual, é outro elemento ético recorrente no romance.

“O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo… Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”

(Guimarães Rosa, 1988, p.8)

A autonomia, no sentido de colocar sempre em dúvida os valores hieráticos tradicionalmente recebidos, é um valor que o protagonista passa a levar em conta ao caracterizar as pessoas com as quais tem contato durante sua travessia.

O Bem e o Mal na Perspectiva do “Homem Humano”

Ao contrário de algumas correntes racionalistas, Guimarães Rosa, no Grande Sertão, parece dar a entender que os valores humanos (políticos, éticos e estéticos) não são objetivamente extraídos da realidade, são mais bem construções criativas dos homens, retiradas da própria vivência e da relação que estabelecem com os demais.

Às vezes parece que Riobaldo deixa escapar que sem Deus nenhuma ética é possível. Mas a vida humana é intrinsecamente moral e o amoralismo é absurdo, carece de senso comum. Com Deus ou sem Ele, Riobaldo continua sendo impelido a escolher que veredas tomar em sua travessia.

“Que Deus existe, sim devagarinho, depressa. Ele existe – mas quase só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus”

(Guimarães Rosa, 1988, p. 300)

O próprio Riobaldo percebe nele mesmo a tentação de praticar o mal sem razão alguma e sente-se interiormente dividido. A liberdade passa a ser um fardo quando ele se vê como senhor de suas próprias ações: “o mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão” (Guimarães Rosa, 1988, p. 81).

A origem do mal está no homem mesmo, e as questões da existência do diabo e do possível pacto com ele são postas de lado na afirmação de que “o diabo não há… Existe é homem humano” (Guimarães Rosa, 1988, p. 538). Este homem passa a ser o único responsável pelo seu destino e pelo que acontece na coletividade humana.

Para Riobaldo, a constatação de que o diabo não existe (após o pacto) revelou sua verdadeira estatura e identidade: “eu estava bêbado de meu”. O protagonista descobre-se capaz de enfrentar tanto os corajosos como os ricos.

“O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum”.

(Guimarães Rosa, 1988, p. 3).