Efeito de PEC é adiar mudanças, e reforma continua na estaca zero

September 4, 2020

Reforma do Estado

Por Carlos Ari Sundfeld, professor titular da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, participou da elaboração da proposta de reforma do RH do Estado capitaneada pelo ex-presidente do BC Arminio Fraga.

Esse artigo foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo. Leia na íntegra aqui.

O Brasil tem problemas sérios na administração pública. Um deles está nos recursos humanos. Há desigualdades absurdas entre categorias de servidores. Há carreiras demais. Também faltam estímulos ao bom desempenho. Por isso, a produtividade é baixa. As despesas são incontroláveis. Os serviços sociais, como educação e saúde, são precários. E a confusão jurídica é atordoante.

Com a promessa de ajeitar as coisas, o governo enviou ao Congresso uma PEC (proposta de emenda à Constituição). Seu efeito prático será aumentar a confusão e adiar mudanças.

O primeiro problema é não querer mexer com os servidores atuais. Um mau começo. As distorções existem hoje. Corrigi-las não tira direito de ninguém. Não há direito adquirido ao privilégio e à improdutividade. E não é preciso acabar com a estabilidade dos servidores para melhorar a gestão pública. Basta cobrar o aumento da produtividade e premiar quem faz mais. Para isso, ajustes por leis ordinárias podem fazer a diferença.

O governo tem diagnósticos corretos sobre muitos pontos. Mas o caminho proposto é estranho. Não é preciso PEC para acabar com promoções automáticas, corrigir distorções remuneratórias, impedir penduricalhos, modernizar concursos públicos, extinguir carreiras, avaliar servidores em fase de experiência, desligar servidores estáveis que tenham desempenho insuficiente, ampliar os contratos por tempo determinado. Para tanto, bastam bons projetos de lei, cuja aprovação é mais simples.

Em 1998, houve uma reforma que modernizou normas administrativas da Constituição. Até hoje estamos esperando as leis regulamentadoras. Vamos repetir a estratégia que não funcionou?

O que justifica uma nova PEC? Além de desnecessária para boa parte das mudanças, ela precisa do voto de 3/5 dos deputados e senadores.

Em 2019, o governo já havia proposto reformas na Constituição para controlar gastos públicos, inclusive com servidores, e mudar o pacto federativo. Eram muitas normas, e a qualidade jurídica, duvidosa. De qualquer modo, nada andou até agora. Uma nova PEC não vai agilizar o debate.

Há o agravante de que o efeito imediato de uma emenda constitucional sobre o regime dos servidores públicos será quase nenhum. Tudo ainda dependerá de novas leis.

Por que aumentar assim o tempo da reforma? O mundo político tem de cobrar o envio imediato dos projetos de lei, que são de iniciativa exclusiva do Poder Executivo. Nada justifica o adiamento.

Uma curiosidade da proposta é dar nome novo para o que já existe. Liderança e assessoramento da PEC é o atual cargo de confiança, que continuará dispensando concurso.

Cargo típico de Estado é o atual cargo efetivo, que seguirá dependendo de concurso e gerando estabilidade. Vínculo por prazo determinado é o atual contrato por tempo determinado dos temporários. Mudanças pouco úteis, que aumentam o cipoal jurídico.

Seria bem melhor, por exemplo, se o governo aproveitasse as emendas parlamentares à MP 922, que há poucos meses tentou ampliar os contratos de servidores por tempo determinado.

A MP caducou, mas a discussão mostrou as dificuldades dos estados e municípios para usar bem esses contratos, frequentes em educação e saúde. Boas soluções surgiram no Congresso. É viável aproveitá-las numa lei nacional. O assunto é urgente e não depende de PEC.

Por fim, há ideias preocupantes na PEC. Uma é dar ao presidente da República o poder de, sem autorização do Legislativo, extinguir, transformar ou fundir autarquias e fundações. Isso inclui o Ibama, o Iphan, o BC, o Cade, as agências reguladoras, as universidades federais e o CNPq.

É evidente que não podem ficar nas mãos de uma só pessoa as decisões sobre organização administrativa em áreas tão importantes como ambiente, patrimônio histórico, política monetária, defesa da concorrência, regulação econômica, ensino superior e desenvolvimento científico.

Estamos na estaca zero.