A tragédia yanomami que os números poderiam antecipar

January 31, 2023

Saúde

Artigo originalmente publicado na Folha de São Paulo

As imagens que circularam nas últimas semanas, de yanomamis doentes, desnutridos e fragilizados, não deixam dúvidas de que esta é uma tragédia de grandes proporções. Mas um número, obtido de forma exclusiva na reportagem do site Sumaúma via Lei de Acesso à Informação (LAI), ajudou a escancarar a dimensão do problema: nos últimos quatro anos (2019-2022), 570 crianças com menos de 5 anos morreram no território yanomami por “mortes evitáveis”, um aumento de 29% em comparação ao quadriênio anterior.

Mas por que um número tão relevante como esse, que deveria auxiliar na formulação de políticas públicas para a população vulnerável, precisou vir à tona através de um pedido de acesso à informação e não consta, de forma sistematizada, em publicações ou divulgações regulares do próprio Ministério da Saúde?

O fato é que existem inúmeras limitações e vazios informacionais sobre a saúde indígena, especialmente na Amazônia Legal, que engloba cerca de metade da população que se declara indígena no país e inclui os yanomamis. Um estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) de 2021 traz importantes considerações sobre as limitações de dados sobre a saúde dos indígenas naquela região.

A começar pela própria cobertura de óbitos nos registros do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde: alguns estados do Norte e do Nordeste ainda têm cobertura inferior à média nacional, e a subnotificação de registros está relacionada à exclusão social desta população e às longas distâncias que precisam ser percorridas para o acesso aos serviços públicos e de saúde. Assim, variações nas ocorrências nestes registros precisam ser interpretadas com cautela, especialmente quando se considera que a cobertura dos dados de mortalidade vem melhorando ao longo dos anos.

Além disso, apesar da criação do Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (Siasi), em 1999, e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) no Ministério da Saúde, em 2010 –dois importantes avanços no modelo de atenção à saúde indígena nas últimas décadas–, as informações seguem sendo de difícil acesso.

O Siasi, que tem por objetivo justamente a coleta, o processamento e a análise de informações para o acompanhamento da saúde das comunidades indígenas, apenas disponibiliza os dados sob demanda via LAI, diferentemente do que acontece com os demais sistemas de informação do Ministério da Saúde, cujos dados estão publicamente disponíveis para acesso. Assim, em vez de facilitar o acompanhamento das ações de saúde direcionadas aos indígenas, a solicitação dos dados do Siasi feita exclusivamente via LAI prejudica a publicidade das informações. O próprio IEPS ilustra algumas dificuldades nos pedidos de informação do Siasi que fez via LAI, como o fato de as informações compiladas no Siasi não estarem listadas em um domínio público.

Mas diversas limitações persistem mesmo após o acesso aos dados do Siasi, já que várias informações produzidas por esse sistema divergem substancialmente das que estão em outros sistemas do Ministério da Saúde. Um exemplo dessas inconsistências é o descompasso no número de mortes da população indígena, pelo menos três vezes maior no Siasi quando comparado ao SIM.

É possível que a discrepância esteja relacionada ao preenchimento incorreto da variável raça/cor no SIM (onde indígenas tendem a ser classificados como pardos), mas alguns estudos também questionam a confiabilidade dos dados produzidos no próprio Siasi, como erros de preenchimento, ambiguidade nas variáveis e duplicidade na contagem.

Há também diferenças na cobertura e alcance dos diferentes dados (no Siasi estão apenas os indígenas que estão em acompanhamento) e no processamento e ratificação das informações compiladas (o Sesai destaca que existe uma demora no registro dos dados de aproximadamente dois anos devido a um processo de qualificação e checagem das informações e os dados oficiais são publicados com intervalo de 18 meses após o final do ano de ocorrência).

A pouca confiabilidade nos dados produzidos sobre os indígenas acabam por priorizar análises menos detalhadas e desatualizadas, como é o caso da importante publicação “Os Indígenas no Censo Demográfico 2010”, do IBGE. Sem acesso fácil e confiável às informações da saúde dos indígenas fica difícil monitorar e trazer à tona situações de emergência para uma pronta resposta do poder público. Ainda que as fotos sejam registros marcantes, apenas os dados podem nos ajudar a quantificar a dimensão da tragédia yanomami.

Sem a publicidade das informações e a melhora nos instrumentos de coleta dos dados, nossa sociedade segue compactuando com a invisibilização da população indígena.