A democracia travada nos EUA

November 9, 2020

Internacional

Esse artigo foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo. Leia na íntegra aqui.

“O que podem conhecer da Inglaterra os que apenas conhecem a Inglaterra?”, interrogou Kipling. Os EUA estão na berlinda, e especialistas em Brasil apresentam diagnósticos institucionais sobre aquele país. O exercício reverso também é comum: examinar o Brasil à luz de um único caso desviante, o dos EUA.

Mas não faltam estudos comparativos empiricamente robustos concluindo que o sistema político americano caracteriza-se pela difusão de poder e tem elevado potencial para impasses. Há muitos pontos de veto: o Senado, a Câmara, a Presidência, o Judiciário, o federalismo. Na Inglaterra ou na França, devido à fusão de Poderes Legislativo e Executivo e à existência de Judiciário com baixíssimo protagonismo, além do unitarismo, o Parlamento é o único ponto de veto.

Nos EUA, o Senado como ponto de veto é alavancado pela instituição do “filibuster”, que equivale à exigência de supermaioria de 60% para a aprovação de legislação na Casa. Basta que uma minoria de 41 senadores (total = 100) apoiem uma moção que impeça o encerramento (“cloture”) dos trabalhos e o início da votação.

A capacidade do sistema político de produzir mudanças institucionais ou de políticas públicas é muito baixa, e reduz-se com a polarização. Elas só ocorrem quando janelas de oportunidade se abrem. O caso da mais importante mudança de política pública do país —o chamado Obamacare, que cria um sistema público de saúde— é ilustrativo.

Uma curta janela de cinco meses abriu-se entre 9/2009 e 2/2010, porque Obama contava com maioria nas duas Casas e, no Senado, contava com exatos 60 votos. Assim, o voto unânime e contrário dos republicanos não foi obstáculo. Durante seis meses após a posse, devido à pendência em torno de uma vaga no Senado, a janela permanecera fechada, o que voltou a acontecer depois.

No entanto, na hora da implementação do Obamacare, 26 estados arguiram que a lei era inconstitucional. Além disso, recusaram-se a expandir o Medicaid (ajuda federal a idosos), que era parte do Obamacare. O último ponto de veto foi a Suprema Corte, que acolheu parte das demandas dos estados, em particular a de autonomia quanto ao Medicaid.

A democracia americana tem sido descrita como um sistema travado e contramajoritário. Trump hiperpolitizou a máquina sem produzir mudança institucional. A guerra cultural foi o único espaço de atuação do Executivo hiperbólico.

Um governo Biden terá sina pior com um Senado e Suprema Corte controlados pelos republicanos. Não só devido ao “filibuster” mas porque, ao contrário do Brasil, o Senado deve consentir na aprovação de membros do gabinete, dos militares e dos juízes federais. Impasses e polarização permanecerão.